Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Privatizar para tornar público: o discurso dos jornais brasileiros

‘Você não acaba com o monopólio público dizendo, simplesmente, que ele vai se tornar privado. Você diz apenas que ele vai ser público e mais eficiente.’ Essa é a conclusão de Fernando Felício Pachi Filho depois que analisou os discursos publicados nos jornais mais destacados no país sobre a privatização das telecomunicações em sua tese de doutorado. Sobre esse assunto, Fernando conversou com a IHU On-Line, por telefone. Ele acredita que ‘quem falava em soberania era basicamente quem se opunha ao projeto de privatização, porque, dentro do discurso de quem era pró-privatização, a soberania não era colocada nem como assunto principal nem como assunto polêmico’.

Fernando Felício Pachi Filho é jornalista pela PUC-SP e licenciado em Lingüística, pela Universidade de São Paulo (USP). Também é mestre em Semiótica e Comunicação, pela PUC-SP, e doutor em Lingüística, pela Universidade de Campinas com período sanduíche em Universidade Paris 12, com a tese intitulada ‘Privatizar para tornar público: uma análise do discurso sobre a privatização das telecomunicações em jornais’. Atualmente, é professor na Fundação Instituto Tecnológico de Osasco.

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Com que sentido você utilizou a expressão ‘privatizar para tornar público’, em seu trabalho?

Fernando Felício Pachi Filho – Na verdade, eu fiz um trabalho na área de análise de discursos. Nesse ramo de estudos da linguagem, os sentidos não são fixos. Eles têm uma determinação histórica e também uma determinação que é pelo uso que se faz. Eu percebi, analisando o material, que não existia um discurso social, principalmente no discurso da mídia, sobre as privatizações. No caso da Telebrás, houve uma oposição entre público e privado. Por isso, o título da tese acabou sendo ‘Privatizar para tornar público’. Porque foi a partir dessa identificação que o discurso ganhou a sua eficácia conectativa.

A transformação do monopólio público, que era o provedor de serviços de telecomunicações, orientou de que forma os operadores privados?

F.F.P.F. – Eu percebi que, primeiramente, para o discurso da privatização ser eficiente, precisaria haver essa identificação com o público. Na verdade, você não acaba com o monopólio público afirmando, simplesmente, que ele irá se tornar privado. Você diz apenas que ele irá se tornar público e mais eficiente, o que vai mudar o regime de posse. Nesse discurso, é minimizada não a importância de quem possui as empresas de comunicação, mas a prestação de serviços públicos.

Outra coisa: esse discurso constrói um passado de ineficiência para o setor público. Então, o passado imaginado nesse discurso é absolutamente insatisfatório para a sociedade brasileira e, em razão disso, ele se justifica. Isso quer dizer que, a partir desse passado que não funcionou, esse discurso consegue legitimidade, ao mesmo tempo deslocando toda a expectativa de mudança e de benefício para o futuro.

A quem serviu a privatização das telecomunicações?

F.F.P.F. – Na verdade, o que você tem, por conta desse movimento discursivo, é um grande apagamento das questões políticas das privatizações. Com isso, se reduz a discussão a uma prestação de serviços. Também diminui a importância de quem é a posse, ou seja, se pertence ao estado ou a grupos privados. Acaba existindo uma discussão reduzida a como privatizar e não a porque privatizar. Então, a privatização é tomada sempre como uma lógica inevitável dentro de nosso contexto histórico. Dentro de tal lógica inevitável, não há como discutir o que se deve ou não fazer, mas como fazer. Acaba existindo uma diminuição da discussão política. Quando ela se estabelece como verdade inevitável, existe uma lógica econômica que predomina. Desse modo, o político em si está em segundo plano porque os rumos da sociedade já estão definidos, não havendo, com isso, possibilidade de mudança. Toda a discussão não leva nunca em consideração o fato de que seja possível mudar esse cenário. O que acontece é justamente que a oposição a esses processos acaba sendo considerada e identificada com todos os valores do passado. Ela acaba, portanto, servindo de fato a todos os grupos que tinham interesses na privatização das telecomunicações.

Que tipo de discursos você identificou na privatização dos serviços de telecomunicação no país?

F.F.P.F. – Como eu trabalhei com material vindo de jornais publicados na época, o que se terá, em primeiro lugar, é uma diminuição da polêmica em torno da privatização. A privatização é tomada como fato inevitável, e a mídia, de forma em geral, era pró-privatização. Pelo menos a mídia que está colocada tradicionalmente no país e que, para dar um efeito de debate, emite opiniões contrárias em artigos assinados por pessoas da oposição ou economistas de linhas diferentes, que compõem discursos minoritários. Quando você considera um discurso de oposição minoritária, você está assumindo a posição discursiva do dominante. Eu vi, desta forma, neste caso, um discurso já legitimado. Um só precisa do outro para mostrar a sua razão de existir.

A privatização das telecomunicações gerou algum tipo de prejuízo para a soberania?

F.F.P.F. – Essa questão da soberania acabou também sendo diminuída. No Brasil, ela não foi tratada dentro do universo de crenças colocado no discurso da privatização, aparecendo apenas como assunto da oposição. Quem falava em soberania era basicamente quem se opunha ao projeto de privatização, porque, dentro do discurso de quem era pró-privatização, a soberania não era colocada nem como assunto principal nem como assunto polêmico.

Que avanços e atropelos que a privatização trouxe para o setor de telecomunicações no Brasil, em sua opinião?

F.F.P.F. – Percebo que, hoje, não se pensa ser possível construir uma prestação serviço do setor público. Acredito que este seja o maior risco para o país. Há muitas privatizações feitas de forma muito rápida, sem serem levadas em consideração outras saídas. Isso ocorre nos setores básicos da prestação de serviços da população, seja na saúde ou na educação, seja na previdência ou no setor empresarial-estatal. Tais discursos estão todos ligados. A sociedade brasileira está muito carente de serviços públicos. Ela não pensa que pela via política vai adquirir alguma coisa, mas sim pela via de aquisição de serviços, comandada pelo setor privado. Nós mesmos achamos que tudo o que vem do setor privado é melhor.

Então, os discursos se mostraram positivos em relação à privatização?

F.F.P.F. – Eu não gostaria de apresentá-los como discursos positivos. Você tem em torno da privatização toda uma construção discursiva de que ela é o melhor para o conjunto do país. O melhor para todos parece ser o privado.

A privatização influenciou de alguma forma para a democratização dos meios de comunicação?

F.F.P.F. – Se você olhar hoje, de fato você teve um acesso muito ampliado, mas também porque o Estado fez grandes investimentos antes na infra-estrutura. O que existe, atualmente, é uma expansão de serviços, pois o Estado não investiu nisso, mas a infra-estrutura acabou sendo um investimento estatal. É mera conseqüência. O Brasil teve a chance, em algum momento, de atualizar sua tecnologia de telecomunicações. Isso é inegável, mesmo porque no mundo em que estamos hoje ninguém mais concebe ficar, por exemplo, sem internet. Isso foi necessário. Os capitais foram gerados a partir do investimento externo, o que nos faz ver que, de fato, o benefício foi ampliado. No entanto, a questão que também precisa ser analisada é o quanto nós também como nação investimos nisso.