O jornalista americano Carl Bernstein ganhou fama internacional pela série de reportagens do Washington Post, feita em parceria com Bob Woodward, que derrubou Richard Nixon da Presidência dos Estados Unidos, nos anos 1970. Desde o escândalo Watergate, publicou pelo menos dois livros com ampla repercussão: uma biografia do papa João Paulo II, em parceria com Marco Politi, em 2005, e outra da atual secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, lançada em 2007. Aos 66 anos, trabalhando diariamente num escritório na Rua 60, quase esquina com Quinta Avenida, Bernstein parece bem diferente do personagem vivido no cinema por Dustin Hoffman, em Todos os homens do presidente, ou por Jack Nicholson em A difícil arte de amar (Heartburn), drama sobre um casal em crise dirigido por Mike Nichols, com roteiro em tons autobiográficos de Nora Ephron, que foi casada com Bernstein. Em seu segundo casamento e colaborador da revista Vanity Fair, Bernstein visita o Brasil em maio para um seminário sobre liberdade de expressão organizado pela Escola da Magistratura do Rio (Emerj), Associação Nacional de Jornais (ANJ), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) e Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner). Nesta entrevista ao Globo, Bernstein fala sobre o jornalismo hoje na América Latina e em seu país.
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O senhor considera que o governo Obama tem uma relação com a mídia mais transparente e democrática do que seu antecessor, George W. Bush? Quais as principais mudanças? É possível comparar a mídia americana hoje com aquela dos anos 60, sob o governo Nixon?
Carl Bernstein – Sim. Havia uma falsidade, e mesmo desonestidade fundamental, na relação do governo Bush com a mídia, e isso de alto a baixo, especialmente do presidente e do vice-presidente. Havia muita coisa secreta e isso tornou a relação entre a Casa Branca e os jornalistas difícil. Havia também falsidade no governo Nixon. Mas a falsidade dos governos Nixon e Bush tem origens diferentes. A falsidade de Nixon tinha a ver com a sua psique doentia; a de Bush tinha a ver com ideologia e a guerra.
E teve a ver também com o papel do vice-presidente, Dick Cheney. Nos anos Bush, a Casa Branca foi terrivelmente desonesta. Não acho que isso ocorra com Obama. Ele tenta ser honesto, apesar de ser muito controlador da mensagem a ser passada pela Casa Branca. Obama tem uma compreensão fundamental sobre o valor de uma imprensa livre para uma sociedade e uma cultura democráticas. Ele também entende que é inútil tentar manipular a mídia.
Mas também é verdade que os jornais e as TVs não são tão poderosos hoje quanto no passado, por causa da internet e da diversidade de meios de divulgação de notícias.
C.B. – É importante não generalizar, e sim contextualizar, olhar os acontecimentos em sua época. Os anos 60 eram bem diferentes dos anos 2000. Coletivamente, as empresas jornalísticas continuam muito poderosas. Individualmente, as organizações mudaram muito e enfrentam uma proliferação de mídia. Ainda temos os três canais abertos que tínhamos, ainda poderosos, mas temos também os canais de TV a cabo, que mudaram o panorama do jornalismo de TV. Os jornais continuam poderosos, mas hoje há a internet, com dezenas de blogs.
Acho que os jornais estão migrando muito bem para a internet. O site do New York Times é fabuloso, um dos melhores da internet, talvez o melhor site de notícias em língua inglesa. The Washington Post e The Wall Street Journal são jornais diferentes hoje, mas continuam poderosos.
Um problema de todas as nações
O senhor irá ao Brasil para participar de um seminário sobre liberdade de expressão. Como analisa as tentativas recentes de controlar a mídia na América Latina, especialmente na Venezuela e na Bolívia?
C.B. – Toda tentativa de controlar e cercear a liberdade de expressão e a imprensa livre é ruim, quer seja por razões econômicas, ideológicas ou políticas. É compreensível que governos se preocupem com o poder da mídia, em parte por causa da irresponsabilidade de elementos da mídia e da imprensa. O que é uma verdadeira reportagem? É a versão mais aproximada da verdade. É uma frase simples que requer uma enorme perseverança para apurar e juntar os fatos. De outro modo, o trabalho jornalístico não significa nada. O que justifica o trabalho da imprensa é a verdade, mas com que frequência nós atingimos a verdade? Essa é uma das razões pelas quais os líderes são tão preocupados com a mídia. E também, por razões ideológicas, os políticos são temerosos de que jornais, TVs e revistas sejam apenas fachadas a serem manipuladas por grupos de oposição. Isso explica o temor dos políticos, mas não os justifica, quer eles estejam na Coreia do Norte ou na Itália, onde há democracia, mas a liberdade de imprensa é ameaçada porque o presidente é dono de um grupo de mídia. Não acho que estejamos falando apenas da Venezuela ou da Bolívia quando falamos de cercear a liberdade de imprensa. Esse é um problema de todas as nações. No caso da América Latina, houve o caso das ditaduras.
Um Conselho para punir é um erro
Como o senhor avalia a situação no Brasil, onde o senhor esteve nos anos 80?
C.B. – Estive pela primeira vez no Brasil nos anos 80, no ano da eleição de Tancredo Neves, com quem tive o prazer de me encontrar. Era uma no em que a liberdade de expressão voltava a imperar no Brasil. O que quero dizer é que a situação da mídia não pode ser separada da situação da cultura de modo geral, do contexto que pode nos ajudar a entender os motivos pelos quais governos tomam medidas repressivas, ainda que elas não sejam justificáveis ou aceitáveis. Para mim, não há justificativa para reprimir a liberdade de imprensa porque ela é o verdadeiro caminho para servir ao povo.
Há um debate no Brasil sobre a criação de um Conselho Nacional de Jornalismo, que serviria para orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista, ou seja, para garantir a prática do bom jornalismo e punir maus jornalistas.
C.B. – Punir maus jornalistas? Como um conselho poderia garantir a prática do ‘bom jornalismo’?
Bem, a proposta é que o conselho poderia estabelecer punições como cassar o direito de exercer a profissão.
C.B. – A única punição possível para maus jornalistas é a que vem dos leitores, é o constrangimento que resulta de um trabalho ruim. Mas ter conselhos oficiais que avaliem o trabalho jornalístico é um caminho péssimo. Não tenho problemas com críticas ou análises do trabalho jornalístico. Não tenho qualquer problema em receber críticas do meu trabalho jornalístico por um político ou quem quer que seja. Criticar é bom. E também acho que nós, jornalistas, devemos responder por um mau trabalho. Mas apontar um conselho oficial governamental para criticar e punir é uma ideia muito ruim, um erro.
Todo presidente tem o direito de se defender
Como o senhor vê as tentativas na América Latina de reprimir o trabalho de organizações jornalísticas, como as do presidente Hugo Chávez, que mandou fechar uma emissora de TV na Venezuela e prender o proprietário de uma outra emissora que criticava o governo? Ou no Equador, onde o presidente Rafael Correa foi quem ameaçou?
C.B. – Isso é péssimo, evidentemente. O problema é saber se as emissoras de TV são de fato jornalísticas ou são formas de mascarar organizações opositoras. A mim, parece que Hugo Chávez está engajado numa luta ideológica contra a oposição. Isso explica, ainda que não justifique, suas ações. Não acho que seja justificado fechar emissoras ou proibir alguém de publicar suas opiniões, ou proibir a imprensa livre.
Há também meios econômicos de pressionar organizações jornalísticas, como acontece atualmente com relação ao jornal Clarín, na Argentina, que vem sendo objeto de devassas fiscais pelo governo Cristina Kirshner. O senhor acha que essa é uma forma de censura?
C.B. – Outra vez, devo dizer que não estou a par da situação da Argentina em detalhes para dar uma opinião. Fui lá no começo dos anos 90. Eu deveria estudar a situação hoje. No caso Watergate, houve muita pressão para impedir a publicação das reportagens e muita pressão econômica sobre o jornal The Washington Post. E houve resistência também, por isso as pressões não foram bem sucedidas. Sempre que o poder tenta desafiar os fatos e calar os meios de comunicação, a resposta é óbvia: é uma violência contra a imprensa livre. Mas também acho que todo presidente tem o direito de se defender e dizer que um trabalho jornalístico é ruim.
Papa toma atitudes absurdas
O senhor é autor de um livro sobre o papa João Paulo II e escreveu sobre seu maior conselheiro, o cardeal Ratzinger, hoje papa Bento 16. Como o senhor vê essa série de escândalos sexuais na Igreja Católica?
C.B. – Acho que estamos vendo a consequência direta do pontificado de João Paulo II. Quando as denúncias de abusos sexuais na Igreja vieram pela primeira a público, havia muita apreensão sobre como aquilo iria atingir a instituição da Igreja. E naquela época o papa João Paulo II e seu principal conselheiro, o então cardeal Ratzinger, que vem a ser o atual papa Bento 16, escolheram proteger a instituição da Igreja em detrimento da população de fiéis e dos fiéis enquanto indivíduos. Essa é uma história obscura e agora continua a causar essa enorme reação. Há também questões teológicas sobre o celibato e como isso afeta os padres que não foram respondidas. Os seminaristas se defrontam com problemas de repressão sexual que são seculares.
Mas tudo isso vem do fato de que ambos os papas preferiram proteger mais a Igreja, enquanto instituição, do que os fiéis e os padres, enquanto fiéis e indivíduos. E o papa atual toma atitudes absurdas, culpando a imprensa, como se o jornal The New York Times fosse responsável pelos escândalos sexuais da Igreja apenas porque os noticiou…
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Correspondente de O Globo em Nova York