Estreou no domingo (2/12) a TV Brasil, criada pelo governo federal por meio da medida provisória 398, de 10/10/07, que estabelece a implantação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). O novo canal, que reunirá as TVs educativas e públicas das esferas federal, estadual e municipal do país, quer se tornar a ‘cabeça’ de uma nova Rede Pública de Televisão.
Por conta da criação da TV Brasil, alvo de vários questionamentos por parte da sociedade, o site do Rio Mídia ouviu profissionais da área da Educação e da Comunicação. Afinal, qual deve ser o papel da TV pública? Esta foi a pergunta dirigida aos entrevistados.
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Antônio Brasil
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
‘Em primeiro lugar, devemos nos perguntar o que seria uma televisão pública e num segundo momento, será que o público realmente quer, está disposto a prestigiar, bancar, monitorar participar de uma televisão pública de verdade?
No Brasil, não acreditamos muito em pesquisas. Preferimos acreditar na intuição, no instinto de nossos líderes políticos para lançar grandes projeto. Principalmente, na área de comunicação. Foi assim com a chegada da imprensa, trazida pela família real portuguesa em fuga das tropas francesas, meio de surpresa. Sem qualquer planejamento.
A instalação da TV não foi muito diferente. O velho Chatô, dono de quase tudo na área de comunicação nos anos 50 no Brasil, decidiu e foi decidido. O Brasil foi o quarto país do mundo a ter televisão. Não tinha educação, não tinha saúde, não tinha sequer uma identidade, mas já tinha televisão.
Pública ou privada, a televisão veio para compensar todas as nossas deficiências. Um projeto gigantesco – que atingiria milhões de brasileiros – inspirado e conduzido por uma única pessoa.
Ou seja, não acreditamos em pesquisa. Ninguém procurou saber de forma científica, aprofundada, qual seria o papel da televisão pública brasileira antes de decidir lançar o mega projeto. A história se repete. Na hora H, nós daremos mais um jeitinho.
Televisão pública de verdade não se constrói de uma hora para outra. Faz parte de um projeto maior de educação, cidadania e participação da sociedade. Antes de tudo, deveríamos consultar os principais interessados, os telespectadores brasileiros: será que eles realmente sabem o que é, querem ou precisam de uma televisão pública?’
Edgard Rebouças
Jornalista, mestre e doutor com pesquisas sobre políticas e estratégias de comunicações, professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE e coordenador do Observatório da Mídia Regional: direitos humanos, políticas e sistemas
‘Qualquer TV, seja chamada de pública, estatal ou privada, deveria simplesmente cumprir com os princípios que estão no artigo 221 da Constituição, ou seja: ser educativa, artística, cultural e informativa; promover a cultura nacional e regional; estimular à produção independente e a regionalização; e, sobretudo, respeitar os valores éticos e sociais. O grande problema em torno deste debate é que há uma confusão conceitual quando se mistura sistema com modelo de gestão. Todo o sistema é público, a forma como os canais são administrados é que difere. Assim, a classe política teria em sua órbita, por exemplo, a Radiobrás, as TVs Educativas, as TVs Culturas, a TV Câmara, a TV Senado, a TV Justiça, os canais dos Legislativos estaduais e municipais e as TVs e canais universitários. Já a classe econômica se encarrega da gestão, em forma de concessão, das TVs comerciais, como, por exemplo, a Globo, o SBT, a Rede TV! e outras tantas. Estes são dois modelos: estatal e privado. Público mesmo até agora nada.
A TV Brasil será uma rede estatal com aparente espírito público. O equívoco será atribuir a ela todos os princípios que deveriam ser cumpridos por todas as demais. Sou a favor de um ou mais canais estatais, como sou a favor das emissoras privadas, contanto que ambos sigam o que está na Constituição. Mas, principalmente, sou a favor da democratização da comunicação, onde a sociedade como um todo tivesse seu espaço.
Da mesma forma que o modelo da democracia representativa já está esgotado, o que defendo é uma democracia participativa para a mídia.
O atual governo poderia fazer história não só com esta TV Brasil que está entrando no ar, bastaria apoiar uma Conferência Nacional de Comunicação e um novo marco regulatório para o setor, este sim com verdadeiro espírito de defesa do interesse público’.
Élida Vaz
Jornalista, professora e assessora de comunicação da Multirio
‘Num país como o Brasil, uma TV Pública deve ter o compromisso de promover a educação, a cultura e o entretenimento de qualidade. Ou seja, estar comprometida, de fato, com a sociedade e não com os interesses de mercado ou de governos. Para isso, é necessário assegurar formas de controle por parte da sociedade e também pensar a respeito do financiamento.
Não é possível mais conceber TV ou qualquer outra produção de mídia desatrelada da educação e da promoção da cultura. Vários estudos mostram que a TV é a principal, senão a única, forma de lazer de boa parte da nossa população. E muitos países que já estão discutindo este tema há bastante tempo indicam que o caminho é pensar no acesso a uma programação de qualidade como um direito.
As crianças e os jovens devem ser os principais beneficiados por este tipo de iniciativa, até porque são certamente os expostos e atingidos pelo modelo vigente, baseado apenas na lógica do mercado. Investir em produções diversificadas, que valorizem a nossa cultura e cada um de nós, do jeito que somos, pode ser um bom começo de caminho.’
Ivana Bentes
Diretora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
‘A criação de uma Rede Pública de Televisão é um projeto logístico e estratégico nacional que, na verdade, já deveria ter ocorrido nos anos 50 e 60, quando a TV chegou ao país e foram implantados os canais públicos.
Na prática, a rede pública de tevê que temos foi criada para dar errado, pois sempre foi penalizada e proibida de ter, de fato e de direito, uma sustentação econômica viável. Ao meu ver, a rede pública de TV tem um grande papel na democratização da informação e do conhecimento, bem como na experimentação de novos formatos e produtos. Questões relativas à educação, saúde e cultura nem sempre receberam a atenção devida das redes comerciais.
A TV pública, me parece, ser um instrumento poderoso de agrupamento de interesses diversos e consistentes de alcance nacional. Mais do que tudo isso, a criação da TV traz à tona o debate do que é público. O público não pode ser confundido com o estatal e muito menos com o privado. Muito pouco se fala sobre isso no Brasil. Chegou a hora’.
Marcia Stein
Professora e jornalista, coordenadora do Rio Mídia
‘Os responsáveis pelas TVs públicas devem elevar ao maior grau possível o compromisso com a qualidade e a diversidade de seu conteúdo. Afinal, por não dependerem tão diretamente do investimento de anunciantes ou de patrocínios da iniciativa privada, as TVs públicas têm o dever de dirigir-se aos seus espectadores como cidadãos ao invés de tratá-los – como fazem as TVs comerciais – como consumidores potenciais. Esse é o maior compromisso da TV pública, e deve ser concretizado através da veiculação de uma programação responsável, ética e alternativa.
Finalmente, seu papel é o de espelhar a identidade brasileira em todos os seus aspectos e contrastes, valorizando a cultura, investindo na educação e ampliando os horizontes de informação de todo o nosso povo. Para garantir o cumprimento destes parâmetros, no entanto, não bastam boas intenções nem mesmo a contratação de um corpo técnico de ponta.
É preciso garantir uma gestão autônoma, tanto financeiramente quanto no aspecto político-ideológico. Um canal de TV é um meio de expressão cultural de uma nação e de constituição de sua imagem, para si mesmo e para o restante do mundo, não devendo jamais ser convertida em espaço de divulgação de bandeiras partidárias. Esse é o perigo! Estejamos, portanto, atentos e mobilizados e sejamos capazes de cobrar a concretização desta nova TV pública como um espaço de afirmação da identidade brasileira em toda a sua densidade e riqueza’.
Marcos Ozório
Mestre em Educação e Diretor de Mídia e Educação da Multirio
‘Espero que a TV Pública não busque se identificar com o modelo de tevê comercial, aprisionada pelos anunciantes, pelos padrões já consagrados e pela busca desenfreada pela qualidade técnica. É desejável que a TV Pública ouse um formato diferenciado e invista na contramão da tevê convencional.
Acho que a TV Pública também deveria abordar conteúdos que a TV comercial não trabalha. Na minha avaliação, a programação da TV brasileira carece de um conteúdo diferenciado. Por exemplo, discutir e criticar a mídia em geral e, em particular, a própria televisão.
Além de ser um tema que mereceria destaque na programação, creio que este deveria ser um dos compromissos da TV Pública. Espero ainda que a TV Pública invista, de fato, na programação infantil, sempre tão relegada a um plano menor. Ela deveria assumir que é uma tevê que realmente atribui destaque à programação – de qualidade – dirigida às crianças.
Por último, penso que a TV Pública deveria ainda democratizar a produção televisiva, trazendo pra dentro da tevê a diversidade cultural, a riqueza regional do Brasil, não de uma forma exótica ou como se fosse algo curioso. Mas, sim, como valorização e respeito a todas as manifestações culturais existentes em nosso país.
É bom lembrar que, na prática, ninguém está, agora, inventando algo novo. Tevês públicas sempre existiram no Brasil e algumas muito exitosas. Mas essa nova TV, que pretende ser a `cabeça´ de uma Rede Pública de TV, traz consigo esperanças e expectativas de um novo modelo de televisão para a sociedade brasileira.
O Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobrás, disse certa vez que a TV Pública não deveria estar preocupada em ter audiência cativa, mas, sim, com uma relação e perspectiva emancipatória. Seu dever seria emancipar o público, e não torná-lo cativo. Concordo com ele!’.
Orlando Guilhon
Presidente da Associação das Rádios Pública do Brasil (Arpub)
‘Uma TV pública, assim como uma rádio pública, deve se pautar por oferecer ao telespectador (ou ao ouvinte) uma programação diversificada, com informação democrática, programas educativos e culturais que reflitam a nossa diversidade cultural regional, programas de inclusão cidadã, sempre procurando ousar nos gêneros e formatos, tendo o cidadão como foco principal de sua programação.
Ela deve ser um palco das discussões dos grandes temas e debates nacionais, buscando sempre ser plural e apartidária, dando espaço a muitas vozes e atores que nem sempre estão na grande mídia comercial…
Ao mesmo tempo, ela pode e deve ser um exemplo de gestão pública, desenvolvendo inúmeras formas de controle público: conselho gestor com maioria da sociedade, ombudsman, ouvidoria, transparência na prestação de contas, pesquisas quantitativas e qualitativas, fóruns de debate com participação da sociedade, além do fortalecimento de espaços externos de controle público, como poderiam ser o Conselho de Comunicação Social (órgão auxiliar ao Congresso Nacional), a Campanha Nacional Contra a Baixaria na TV, o Fórum Nacional de TVs (e do de Rádios) Públicas, ou a Conferência Nacional de Comunicação. Tudo isso pode fazer da TV (e rádio) pública brasileira uma verdadeira TV (e rádio) pública…
Patricia Kogut
Jornalista, assina a coluna ‘Controle Remoto’, do jornal O Globo
‘Acho que a TV Pública, bem administrada, pode fazer bem ao país trazendo programação de qualidade. O público infantil é um dos que podem ser beneficiados, basta lembrar que a TV Cultura e a TVE já têm excelentes produções, como Castelo Rá-Tim-Bum e Menino Muito Maluquinho‘.
Ricardo Hofstetter
Autor e roteirista
‘Se a TV é realmente pública deveria atender aos desejos e necessidades do público. Ou seja, todos nós. Mas alguém já fez alguma pesquisa séria e abrangente para descobrir o que o público brasileiro espera da sua TV? E, feita essa pesquisa, será possível montar uma programação que atenda aos desejos de uma população dominada por contrastes (sociais, culturais, econômicos etc.) tão grandes como a nossa?
Pelo que tenho lido, até agora somente acadêmicos, políticos e pouquíssimos profissionais da área estão participando do planejamento e implementação da TV pública. Além disso, seus principais cargos estão sendo indicados pelo presidente da república (que também pode destituí-los a qualquer momento), o que caracteriza a TV como estatal e não pública.
Eu, que sou profissional da área (além de ‘público’), nunca fui consultado sobre nada relativo ao tema. Este e-mail é a primeira consulta que recebo, mas imagino que ele irá influenciar muito pouco no processo todo.
No conselho curador, também escolhido pelo presidente da república, não há sequer um roteirista de TV! Enfim, diante deste quadro, o que eu queria mesmo da TV pública é que ela fosse realmente pública. Mas, ao que tudo indica, não é o que vai acontecer.
E minha maior dúvida: será que precisamos mesmo de uma TV pública neste momento? Dar ao público educação, saúde e segurança de qualidade, por exemplo, não seria infinitamente mais urgente?!’.
Rosa Helena Mendonça
Mestre em Educação pela PUC-Rio, supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola – SEED/MEC
‘Para falar do papel da TV Pública, como professora que sou, me permito uma analogia: Qual é o papel da escola pública na sociedade? Esta questão despertou, nos anos 30, acalorados debates entre intelectuais, gerando o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Este documento foi um marco em prol da democratização das instituições brasileiras e, a escola, ao garantir educação para todos, tornou-se, emblematicamente, um espaço de consolidação da cidadania.
O direito à escola pública é um preceito constitucional e as discussões se voltam agora para a qualidade do ensino e para o respeito à diversidade na escola e na sociedade.
Ao longo desse processo, o papel das mídias também foi relevante e a TV ocupa hoje um lugar de destaque como veículo de informação, de produção e de divulgação cultural.
A proposta de uma TV Pública vem provocando polêmicas entre alguns setores, no entanto, para dar visibilidade à diversidade que compõe a sociedade brasileira, para permitir a democratização da produção audiovisual e o acesso a uma programação independente e de qualidade, a TV pública é, no cenário atual, uma demanda tão significativa quanto foi a conquista da escola pública’.
Sérgio Murilo de Andrade
Presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)
‘A TV pública, como um novo modelo, distinto do estatal e privado, deve estar comprometida com a formação da cidadania e apoiada na legitimação social através do reconhecimento do público na programação, que deve ter um sentido de utilidade.
Ao mesmo tempo deve ser um canal de interação criativa entre os produtores e o público e quanto à audiência, esta deve ser um propósito a ser perseguido por ela, pois de nada adiantaria tanto esforço para não ser assistida pelas pessoas. Deve ser experimental e inovadora em formatos, estilos, temáticas e estéticas e se dirigir ao cidadão, não exclusivamente ao consumidor, promovendo um de diálogo intercultural, que amplie e estenda a representação e o reconhecimento dos sujeitos sociais, promovendo telespectadores melhores e cidadãos ativos para a democracia.
A televisão pública surge como uma possibilidade de se contrapor ao modelo privado-comercial, excludente e hegemonizado no Brasil. No entanto, no projeto do Governo Lula, além do financiamento, o princípio e o modelo de gestão devem ser radicalmente mudados prevendo a participação e o controle da sociedade, a administração por corpo técnico profissionalizado, independência em relação ao governo e a prestação de contas à sociedade, sob pena de anular por completo as possibilidades de transformar a TV Brasil em efetivo instrumento de democracia da mídia e promoção da cultura nacional’.
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Editor do RioMídia