Veja foi mais cuidadosa na estréia da telenovela política: não opinou, não escondeu fontes, não fez ilações, tomou cuidado com os títulos, destaques, legendas e chegou mesmo a aventar ressalvas (edição 1929, de 2/11).
Na continuação do último fim de semana, uma recaída e voltou-se aos velhos tempos do faroeste jornalístico (edição 1930, de 9/11). Fato novo, concreto: apareceu o piloto do avião que transportou as caixas e que confirmou o vôo e a rota. Nada mais do que isso. Como a expectativa era grande e minguados os resultados foi preciso apelar para as licenças jornalísticas.
A começar pela chamada da capa: ‘Veja entrevistou o piloto do Sêneca que transportou os dólares de Cuba’. Veja apenas localizou e entrevistou o piloto. Parabéns pela façanha, mas a segunda parte da oração contém duas suposições: o piloto teria transportado dólares e estes teriam vindo de Cuba. No breve depoimento do piloto Alécio Fongaro (págs. 60-63) verifica-se que, por enquanto, estas afirmações são infundadas.
Adendo delirante
O título da matéria, ‘O vôo do dinheiro de Cuba’, comete as mesmas falsificações: até agora ninguém garante que havia dinheiro nas caixas e que esse dinheiro teria vindo de Cuba. Para fingir exatidão, colocou-se no subtítulo que as três caixas eram de ‘bebidas’ (entre aspas).
Na abertura da matéria, uma adulteração de fatos recentes, de domínio público: por causa da repercussão da primeira reportagem, ‘tucanos e pefelistas saíram anunciando a abertura de um processo de impeachment do presidente Lula e a cassação do registro do PT na Justiça Eleitoral’. Nada disso: a oposição reagiu com cautela à denúncia de Veja e os colunistas políticos Clóvis Rossi (Folha de S.Paulo) e Merval Pereira (O Globo) não a consideraram verossímil.
A seguir, um vistoso infográfico – empulhação inspirada nas histórias em quadrinhos e importada pelos ‘consultores’ da Universidade de Navarra, nos anos 1990 – para comprovar que o Sêneca transportou o dinheiro. Apesar do aparato visual, nenhuma evidência, a não ser a modesta legenda onde se afirma que esta foi a rota do avião depois de receber ‘as caixas do dinheiro de Cuba’.
Ao longo da matéria há outras quatro menções explícitas aos ‘dólares cubanos’ como se tratasse de um dado concreto, inquestionável, e não de uma suposição, por ora, não comprovada.
Para dar dimensão à mirrada continuação da telenovela cubana, o semanário acrescentou um delirante adendo no qual se tenta mostrar a flexibilidade das opiniões de cinco petistas que entre 1995 e 2000 elogiaram Veja e agora a condenam.
Aqui os editores acertaram em cheio. E não uma, mas duas vezes: o PT não chega a ser um modelo de coerência, mas a gloriosa Veja, há algum tempo, deixou de ser modelo de bom jornalismo.
A marcha do tempo
[com os agradecimentos à seção ‘Há 50 anos’, de O Globo, ‘Segundo Caderno’, pág. 7]
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Chamada na primeira página de O Globo, 3/11/55:‘Iludido em sua boa-fé o Sr. Carlos Lacerda’ [era forjada a famosa ‘Carta Brandi’, suposta prova das ligações entre o peronismo e o PTB].
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Idem, dia 5/11/55:‘Hábeas corpus para que Wainer use o título que ele próprio fabricou’ [O jornalista Samuel Wainer é autorizado a utilizar o seu título, Última Hora].
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Manchete da primeira página do Globo em 7/11/55:‘Considerada a ação da imprensa vermelha altamente subversiva’
Subtítulo: ‘Para isso, os ministros militares pediram o fechamento dos órgãos comunistas que circulam no país – até onde chega a audácia dos agitadores do PCB’.