Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Quando a luta de classes vira melodrama

O cartoon abaixo saiu na capa do Le Monde, no dia 10 de julho, uma sexta-feira. Como todo dia, o mais influente comentarista político da França, de nome artístico Plantu, publicou ali sua opinião. Na capa do Monde. Plantu entra no debate por meio do desenho. Sua voz é imagética. Sua pena não escreve, risca. Como Chico Caruso diariamente na capa do Globo ou Angeli na página 2 da Folha. A vantagem – imensa – que eles levam sobre os autores de textos analíticos é que deles o leitor não pode fugir ao final do primeiro parágrafo. Não há como ler ‘só o começo’ da ‘coluna diária’ de um cartunista. Por isso, os cartunistas são os jornalistas mais lidos do mundo.


Isto posto, vamos ao que importa um pouco mais. Em primeiro lugar, vejamos a charge de Plantu naquela sexta-feira.



A mocinha tristonha, que leva na cabeça a ‘torre’ da ‘crise’, pede aos integrantes do G8, que estava por se reunir naqueles dias, que repensem os modos de proceder do capitalismo, ao que o sujeito risonho de gravata colorida responde, um tanto encantado com a silhueta da pedinte:


‘Quanto?’


O homem toma a moça por mercadoria. Tudo é mercadoria para ele. Até mesmo a idéia de ‘mudança de hábitos’ ele interpreta como mercadoria, isto é, ele julga poder resolver o impasse à medida que chegue no preço. Mas seu alvo, aqui, parece ser mesmo a mulher. Ele se deixou enamorar. A seu modo, bem entendido, mas enamorou-se. O desenhista afirma isso pelo coraçãozinho que faz emanar da testa do personagem, que demonstra disposição, digamos, para a prática do amor.


Que personagem é esse? Ele é Berlusconi, o vilão que compra aliados, acompanhantes bonitinhas, tudo.


Como é que dá para saber que Plantu quis, com seu traço, nominar Berlusconi? Pela cor da gravata. Ora, alegará o leitor, mas a gravata é branca, verde e amarela, o que tem isso a ver com Berlusconi? Realmente, as cores não batem. Não sei bem o que houve, talvez um erro de impressão, erro de tinta sobre o papel, porque no site oficial do cartunista, as cores da gravata são branca, verde e vermelha. Cores italianas. (http://www.plantu.net/index.php.) Vamos até lá:



A crise traja andrajos. Com seus brincos, seus remendos, concentra citações operísticas e artísticas que certamente me escapam, mas estão lá. Delacroix? Goya? Os andrajos, mais a torre que lhe serve de papel, remetem ao figurino da Revolução Francesa e à Bastilha. Ela tem uma cara de coitadinha, bem ao gosto de um certo imaginário francês. Ela nos lembra a Isabelle Adjani em Camille Claudel (França, 1988). Mais do que nos lembra: ela é a cara de Camille-Adjani. É a própria. Aos incrédulos, lá vai um pôster do filme.



Na visão do diretor e co-roteirista do filme, Bruno Nuytten, a escultora Camille Claudel é genial, geniosa e vítima, totalmente vítima. Rodin faz dela o que quer. Rodin, claro, é interpretado pelo incontornável Gérard Depardieu, que já fez papel de tudo e mais um pouco; ele deve dispor de alguma cota na legislação francesa, talvez seja item obrigatório da política de reserva cultural. Depardieu faz de Camille o que bem entende e o que mal desentende. Ela, de seu lado, sofre horrores nas mãos do poderoso escultor. Sofre como argila, como gesso. É a garota inocente, talentosa e linda que padece sob as sevícias de um senhor que a deseja e a aniquila. Mesmo assim, Camille é sexy. Quanto mais sofre, mais atraente se torna a olhares cobiçosos – como aquele que, cinicamente, Berlusconi lança sobre a ‘crise’ virginal.


Para provar que Camille Claudel é idêntica à ‘Crise’ de Plantu, inclusive nos cabelos, inclusive na indumentária, vai aí outra fotografia.



E basta.


Ocupemo-nos agora do Silvio que não é Santos, ainda que seja tantos, privados e públicos, e goste de televisão. Mais de tê-la que de vê-la. Ocupemo-nos de Silvio Berlusconi. Poucos dias antes de a charge aparecer no Monde, falava-se bastante dos escândalos vinculando o nome do primeiro-ministro italiano, de 72 anos, a jovens de encantos estonteantes. Mais que isso, falava-se de festas noturnas e, principalmente, diurnas, marcadas por desinibições e costas delgadas ao sol. Isso em endereços privativos de Sílvio, que não é Santos, cujo matrimônio ruía. No noticiário, sensacionalista ou não, ele vinha de virar a encarnação do vício. Em Plantu, ele sorri como um Marquês de Sade. Virou a materialização da vilania, da perversidade. Efetivamente, mesmo quando procura evitar, o noticiário tem essa característica, a saber, a característica de constituir tipos mais ou menos polarizados, para o bem ou para o mal, segundo modelos morais sustentados no senso comum. O jornalismo se apóia nas formas narrativas que estão aí, comuns, e elas contêm seus modelos morais, às vezes mais rígidos e primitivos, outras vezes mais sutis. É um dos limites do nosso ofício – fazer o quê?


Antes de seguirmos adiante, um pouco mais de imagem fixa. Façamos uma parada no semblante do primeiro-ministro italiano. Na foto a seguir, com aquela bandeira ao fundo, que não há de ser a de seu país, ele sorri como quem flerta com a crise.



Pois então: assim como a imagem de Isabelle Adjani, ou melhor, de Camille Claudel, migrou de um filme de 1988 para a capa do Monde de 10 de julho de 2009, o riso fixo do político de Roma saiu dos encontros oficiais para ir parar no mesmo desenho. Justapostos, ambos compõem outra configuração iconográfica. E política – o comentário de Plantu é mais político do que meramente iconográfico. Eles representam a tensão melodramática entre o bem – inocente e seviciado – e o mal – que é perverso, ganancioso, devorador de corpos e almas.


Ocorre que essa tensão é menos material e mais, muito mais, como já foi dito, melodramática. Parece roteiro de novelinha das seis. Então a luta de classes seria isso, nada mais que isso?


Apimentemos um pouco o melodrama da luta de classes. No final de junho, os comentários em torno da privacidade de Berlusconi rendiam uma boa reverberação visual, imagética, ou, também, iconográfica. O tiro (de canhão) de largada veio nas páginas e no site do espanhol El País.



Para os curiosos, há muito mais no site do El País. (http://www.elpais.com/articulo/internacional/Berlusconi/pide/embargo/5000/
fotografias/Zappadu/elpepuint/20090613elpepuint_9/Tes
)


Logo, as revistas entraram na festa – não na festa de Berlusconi, mas na festa contra Berlusconi, que, logicamente, como faz Sarney agora, reclamou do complô da mídia armado contra si. Ele, que é dono da mídia, teria virado vítima.



 



O que temos?


Temos que, se voltarmos às figuras de Plantu, os poderosos do G8 cultivam os (supostamente ‘maus’) hábitos burgueses: charutos e taças de vinho. Como bem sabe o leitor, o charuto, a cartola, o fraque, a risca de giz e a gargalhada debochada saíram da vida para entrar nas histórias em quadrinhos como ícones do ócio capitalista. As fotografias dos jardins de Berlusconi, enfeitados de ninfas arquetípicas, complementam deliciosamente, sob medida, a iconografia que demonizou o capitalismo. O que pode não ser novidade, mas é bem interessante.


Lembro-me das adaptações do Manifesto Comunista em quadrinhos. Irritava-me o modo como os desenhos suprimiam o melhor de Marx e Engels, a análise impessoal, e exacerbavam o que eles tinham de pior, ou seja, as críticas morais aos costumes burgueses. É bem verdade que, no caso dos dois filósofos, os xingamentos aos burgueses (que, no Manifesto, costumam ‘se cornear uns aos outros’) eram mais ou menos admissíveis, porque eram uma resposta aos ataques dos burgueses à suposta ‘promiscuidade’ dos proletários. A moral da história (em quadrinhos) é que o capitalismo existia porque os burgueses eram malvados e não tinham coração. A luta de classes, então, só se instalava porque os ricos tinham começado a briga.


Moralismo infantil


No Brasil, esse moralismo infantilizante e melodramático apareceu com força nos anos 60, no CPC (o Centro Popular de Cultura, ligado à UNE). O pensamento sobre as realidades sociais era substituído por uma mitologia de contos de fadas, princesinhas ultrajadas, bruxas ressentidas e aproveitadores sem caráter. A pretexto de explicar a dialética para a massa ignara, essa mitologia destroçou o pensamento crítico e o transformou em massa disforme, em moralismo sem idéias. Foi assim no Brasil e no mundo inteiro.


O pior aconteceu quando o melodrama de esquerda se converteu em Razão de Estado, assim mesmo, com maiúsculas, Razão do Estado Operário: o happy end viria com o justiçamento por meio do Estado. Se a luta de classes provinha de um desajuste sentimental, o paraíso seria a sociedade sem desajustados de o Estado sem sentimentos. As tragédias daí resultantes são sobejamente conhecidas, mas não superadas. Elas se prolongaram na cabeça do pessoal por aí e ainda sobrevivem como panacéia na cultura política. Ainda hoje tem gente que acredita que o capitalismo nada mais é que um desvio moral da humanidade. Pensar assim, quer dizer, não-pensar assim, um dos limites da nossa espécie política – fazer o quê?


Sim, sim, sim, eu sei, eu bem sei: Plantu não tem nada a ver com essa tradição de melodramatizar o pensamento. Seu olhar cortante (‘Le regard de Plantu’) mais desconstrói do que ratifica as idolatrias e as vilanizações, sejam elas de esquerda ou de direita. Acontece que às vezes escapa – e eu apenas me diverti com o traço melodramático que há no traço crítico de Plantu. É como se, para representar o mundo, ele precisasse lançar mão também de fragmentos do discurso moralizante. É como se, sem esses elementos, ele não conseguisse dizer o que lhe cabe dizer. O discurso tem dessas coisas. Não pode existir sem recorrer aos estereótipos, como diria Walter Lippmann. São assim as caricaturas da vida e, não por acaso, Plantu vive de fazê-las diariamente.


Enfim, foi só por isso que escrevi este artigo.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP