Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a crítica deve ser silenciada

Os dados são da organização internacional Repórteres sem Fronteiras (Reporters sans Frontières): em matéria de liberdade de imprensa, o Brasil ocupa o 104º lugar. Há seis anos, ficava em 58º. Quem revela essa vergonha é o jornalista norte-americano Glenn Greenwald, conhecido por ter denunciado o escândalo da rede de grampos da NSA, que mora no Rio de Janeiro e é um analista atento da política e da ação da imprensa no país.

Em entrevista à CartaCapital, o ganhador do Pulitzer crava ainda: “Tudo ficou mais claro: é golpe”. Rosa Weber deve ter se contorcido. Indecisa, ela vive se contorcendo. Mas, deixando de lado a conjuntura, a avaliação da inconsistência da imprensa brasileira traz elementos que merecem atenção.

O ranking da ONG parece contraditório com o grau de avanço técnico da mídia brasileira, sem falar do alto padrão econômico – mesmo com a crise – que sustenta o sistema de comunicação no país. Afinal, é uma posição que nos coloca atrás da Libéria, por exemplo. Traduzindo: a imprensa brasileira é menos livre que a imprensa da Libéria, de El Salvador, do Peru de mais 100 países.

Para quem sempre identificou imprensa com democracia, essa lanterna moral é uma chave a ser considerada. Afinal, desenvolvimento e tecnologia, em matéria de jornalismo, não querem dizer qualidade de informação, pluralidade de vozes e menos ainda liberdade de expressão. Temos uma imprensa rica e ruim. E ruim porque comprometida com os ricos, não com a informação. O padrão Globo de qualidade, por exemplo, serve para fazer propaganda, não jornalismo.

Mas, afinal de contas, o que é tão ruim na imprensa brasileira, quando se toma como referência a liberdade, como faz a ONG internacional? Em primeiro lugar a concentração, com características monopolistas e familiares. Para sustentar esse pecado de origem, a imprensa brasileira ainda é virgem de controles no campo da defesa contra o monopólio, deixando sem regulamentar princípios constitucionais de 1988. Em seguida, a partidarização vergonhosa da cobertura recente, que fez dos jornais e empresas noticiosas de todas plataformas agentes políticos de desestabilização da democracia.

Nos últimos anos não se fez jornalismo entre nós, conforme consagrado pela história liberal dos meios de comunicação, mas pura ação conspiratória, desabrida e irresponsável. Para completar, a intensa conexão de classe, em matéria de visão de mundo, comportamento e valores, fazendo cessar o pluralismo em nome do chamado pensamento único.

O que parece ser algo normal para quem lê jornais no Brasil, com seus colunistas orgânicos e coberturas editorializadas, se afigura como um dos maiores absurdos para quem compreende a imprensa como instrumento de denúncia dos excessos de toda forma de poder. Além disso, os jornais não exercem o papel de equalização democrática por meio do debate de ideias e, sobretudo, não se constituem como instrumento de busca da verdade com base em trabalho sistemático de apuração dos fatos.

Para os parâmetros internacionais, nossos jornais são panfletos, no melhor dos casos. A imprensa brasileira toma bomba nos três quesitos: é serva do poder, serva da ideologia única, serva da manipulação. Quem se curva a tantos senhores não tem condição de arrogar liberdade. Não é um acaso que a melhor cobertura sobre a política brasileira, hoje, venha dos jornais de outros países ou de blogs e experiências jornalísticas independentes. E isso não quer dizer identidade com o governo, mas liturgia dos fatos e dedicação à inteligência.

A pedagogia do sofrimento

O curioso, no entanto, é que essa mesma imprensa familiar, tratada com desdém por seus pares internacionais de maior respeito, não colha entre seus patrocinadores nativos o reconhecimento que julga merecer pela lambança prestada de forma tão tenaz. Quem se dobra demais exibe o cofrinho moral da mentira. Não bastasse ao jornalismo brasileiro a postura sabuja frente às operações da Justiça, principalmente emanadas de Curitiba, cevando o heroísmo exibido de magistrados, tem recebido como troco o amordaçamento.

Depois de perseguir com censura o trabalho independente do jornalista Marcelo Auler, a juíza Vanessa Bassani, do 8º Juizado Especial Cível de Curitiba (sempre elogiada pelos grandes jornais por sua coragem) chegou a sugerir até mesmo a autocensura explícita por parte do jornalista em seu blog. Ela tem coragem de falar o que quer, mas não tem destemor para ouvir o que merece.

A regra é clara: a imprensa serve para incensar a Justiça. Quando a critica, deve ser silenciada. O que começou como perseguição a um blog especializado se espalhou em seguida para um dos maiores jornais do Paraná, a Gazeta do Povo, que, em razão de reportagem sobre os altos salários de magistrados, tem sofrido uma perseguição típica da mentalidade bacharelesca brasileira. Os jornalistas responsáveis pela reportagem se viram vítimas de uma chicana jurídica que arrola uma penca de processos individuais para cada um dos envolvidos na cobertura, em diversas comarcas, simultaneamente, obrigando os jornalistas a devotar seu tempo a atender intimações de juízes pelos quatro cantos do estado. Os fatos são verídicos e a investigação fundamentada. Pior ainda.

Nessa quadra triste para a verdade, em que a pior imprensa do mundo deixou de fazer jornalismo para temperar o caldo de cultura do golpe, um dos bons momentos do periodismo brasileiro recente veio como consequência da perseguição imatura de uma Justiça vingativa. Não há nada mais pedagógico que o sofrimento. Não há melhor jornalismo do que aquele que deixa o poder se roendo por dentro.

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João Paulo Cunha, do Brasil de Fato