Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Quando o jornalista precisa trocar de lugar com o leitor

Foto: rawpixel/Creative Commons

Há momentos na vida do jornalista que ele precisa trocar de lugar com o leitor para melhor entender a situação e conseguir escrever a história. Uma dessas ocasiões é agora, quando precisamos explicar a contabilidade que envolve a aplicação da segunda dose da vacina contra a Covid-19. Vamos aos fatos. Estamos informando há pelo menos três semanas que em torno de 1,5 milhão de brasileiros que já haviam recebido a primeira dose da vacina não apareceram para tomar a segunda dose, em torno de 6% dos vacinados. No Rio Grande do Sul, entre os 19.334 que não tomaram a segunda dose, 10.352 eram profissionais da área da saúde. Antes de seguir adiante com a história, vou falar de “uns negócios” — ou de “uns trens”, como dizem os colegas mineiros — que considero importantes para a nossa conversa.

Vamos aos “trens”. As faculdades de jornalismo nos ensinam os pilares da profissão, como as questões técnicas e éticas exigidas no cumprimento do nosso ofício. Mas, como em todas profissões, a lida diária vai dar ao jornalista ainda mais conhecimento para o bom exercício do seu trabalho. Certa vez, na década de 80, escrevi uma reportagem a respeito de uma médica e um brigadiano (como são chamados os policiais militares pelos gaúchos) que se envolveram em uma briga na ala da emergência de um hospital de Porto Alegre. O motivo: houve um acidente com uma menina e ela foi levada até o hospital em que a médica prestava atendimento. Após administrar os primeiros socorros, a médica disse ao brigadiano para transferi-la para outra emergência. Os dois acabaram se xingando e, no meio da discussão, ela disse que o soldado estava com hálito de bebida alcoólica. Recebeu voz de prisão e tudo acabou numa delegacia da Polícia Civil. Eu estava de plantão no jornal. Fui lá e fiz uma matéria “pão, pão, queijo, queijo”, como se diz quando o repórter faz um relato frio dos fatos, sem saber por que eles aconteceram. Publicada a matéria, recebi a ligação de um homem, de fala mansa, que se identificou como parente de um dos envolvidos na briga. No meio da conversa, ele me perguntou por que não me coloquei no lugar da médica e do policial para saber o motivo da explosão. Fiz o exercício sugerido e constatei que os dois estavam no último grau de estresse: a médica, por trabalhar em uma emergência sem condições adequadas de atendimento e altamente demandada pela sua proximidade com vilas populares; e o brigadiano, que trabalhava em um carro com problemas mecânicos, armado com um revólver calibre .38 e recebendo um salário miserável para enfrentar bandidos que andavam em carrões e estavam armados de fuzis.

Essa história aconteceu há mais de 40 anos. O que lembro é que a médica seguiu na sua carreira profissional, o brigadiano na dele, e da acidentada não recordo com exatidão o seu destino. Depois desse episódio, sempre que me enrolava para contar uma história, me colocava no lugar do leitor. Imaginem: ele vai ler uma história que nem o repórter sabe por que aconteceu. Voltando ao nosso assunto. Colegas, coloquem-se no lugar do nosso leitor, uma pessoa que fez a primeira dose do imunizante. Ele está contando os dias para receber a segunda dose, porque nós o avisamos nos noticiários que o “bicho está pegando”: mais de 3 mil pessoas morrem diariamente de Covid, as redes de hospitais públicos e privados colapsaram, faltam kits de remédios para entubação, há carência de oxigênio hospitalar e as UTIs estão lotadas. Mais ainda: a vacinação segue à conta-gotas enquanto o contágio do vírus vai a galope forçado. Daí publicamos que 1,5 milhão de pessoas não foram tomar a segunda dose. Listamos hipóteses possíveis para o que pode ter acontecido, entre elas: morte, falta de transporte no caso dos acamados, medo devido a fake news e outros motivos. E a cereja do bolo: aqui e ali, começaram a aparecer informações de que estão faltando vacinas para a segunda dose em várias pequenas cidades do interior, principalmente nos estados do Sul do Brasil. A primeira coisa que gostaria de saber como leitor é quem são as pessoas que não foram tomar a segunda dose. Tenho visto tudo que se publicou até hoje (24/02) nos jornais (papel e sites), rádios, TVs (aberta e cabo) e outras plataformas de comunicação. Claro que pode ter me escapado alguma matéria. Mas não encontrei nenhum conteúdo jornalístico investigativo sobre o assunto. Está realmente faltando vacinas para a segunda dose? Se isso está acontecendo, é por desorganização das prefeituras? Ou os prefeitos foram ingênuos de acreditar no então ministro da Saúde, o general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, que recomendou que as vacinas reservadas para a segunda dose fossem usadas para aplicar a primeira dose em outras pessoas? Os repórteres sequer foram conversar com quem não tomou a segunda dose.

Conheço redação de jornal e sei que esse tipo de matéria custa caro, porque o repórter precisa sair a campo. E que existe uma crise econômica nas grandes empresas de comunicação. Mas o negócio é o seguinte: mandar um repórter a campo esclarecer essa história é um baita investimento para aumentar o prestígio do jornal e também o número de assinantes. Hoje os meios de comunicação costumam alardear a contribuição dos seus leitores com pautas, críticas e ideias. Mas essas sugestões, antes de irem ao ar ou serem publicadas como comentários, passam por um filtro. Os brasileiros hoje estão na maior enrascada de suas vidas devido a pandemia causada pela Covid-19 e pela política negacionista do governo do presidente Jair Bolsonaro em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus. As únicas ferramentas que o nosso leitor tem para navegar no meio dessa confusão são as informações das nossas matérias. Daí a importância de nos colocarmos no lugar dele para sabermos que se estamos fazendo a coisa certa. O silêncio do leitor sobre o nosso trabalho não significa que ele esteja satisfeito.

Texto publicado originalmente no blog Histórias Mal Contadas.

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Carlos Wagner é jornalista.