N.R. – O texto a seguir é uma longa e detalhada coleta de depoimentos de jornalistas que perderam o emprego em consequência da crise no modelo de negócios dos jornais norte-americanos. São histórias tristes de quem passou a vida contando histórias de outras pessoas.
A clássica peça Morte de um Caixeiro Viajante (Death of a Salesman), de Arthur Miller, vencedora do prêmio Pulitzer de 1949, abre com uma orientação musical: “Ouve-se uma melodia, tocada numa flauta. É suave e agradável; fala da grama e das árvores e do horizonte. A cortina sobe.” A peça acompanha Willy Logan, um homem com mais de 60 anos, à medida que o domínio de sua vida desmorona em meio a dificuldades de trabalho. Quando, ao final do segundo ato, ele chega a seu final de derrotado, a melodia faz-se ouvir de novo, desta vez na forma de um réquiem. “Só fica a música da flauta”, escreve Miller, “no palco escurecido…”
Ouvi o lamento dessa flauta durante o verão e o outono do ano passado, nas minhas idas e vindas de ouvir jornalistas diminuídos – homens e mulheres que se deixaram viciar pela profissão ainda jovens, idealistas com manchas de tinta, para se verem expulsos dela na meia-idade, ou no entardecer da vida. Esses veteranos jornalistas falaram de planos de demissão voluntária compulsórios nas buscas por emprego fracassadas – de objetivos perdidos, de confiança perdida e mesmo de lares perdidos. Eu estava a par da dizimação de minha profissão: tinha lido as estatísticas, tinha visto os artigos, tinha acompanhado a maneira pela qual velhos amigos eram descartados de seus empregos ao mesmo tempo em que chefes de redação, editores e repórteres especiais optavam pela queda livre do jornalismo freelance. Mas a consistência de seu desespero – à moda de Willy Loman – surpreendeu-me. Houve alguns momentos sinistros.
Verão de 2015, Costa Oeste. Estou conversando com uma velha amiga, uma grande repórter investigativa que foi demitida de um jornal de uma grande cidade. Conseguiu arrumar um novo emprego, que paga bem, mas não é jornalismo. Uma amiga comum disse-me que “é o emprego mais detestável e ela jamais o queria fazer”. Ao falar com minha amiga, insisto que, mais cedo ou mais tarde, ela tem que dar um jeito de voltar à ativa porque ela tem um maravilhoso talento para a curiosidade jornalística. Ela me interrompe bruscamente: “Não me lembro dessa pessoa.”
Início do outono de 2015, num bar na Costa Leste. Um jornalista de meia-idade desempregado, cujo trabalho admirei durante décadas, aceita encontrar-me para tomar um chope. Pago a primeira rodada e ele paga a segunda.
Conversamos sobre editores e jornalistas que ambos conhecemos, sobre matérias bem-sucedidas e outras que se perderam. Um típico papo jornalístico. “E afinal, o que é que você quer?”, perguntou-me. Explico que estou procurando o ângulo humano por trás das notícias de milhares de jornalistas que foram diminuídos em sua profissão. “E eu sou o lead da sua matéria?”, perguntou, agarrando-me e ficando tenso. Senti que o estava perdendo. Daí, uma última tentativa: “Você está deprimido?” Sua resposta imediata: “Você está tentando me irritar?” Saiu deixando um copo cheio de cerveja em cima da mesa.
105 jornais fechados em 2009
De 2009 até o presente, em algum lugar dos Estados Unidos. “Chega um e-mail com o assunto “Jornalista, com investigação sobre os sem-teto”. O remetente agradece-me pelo livro que escrevi em 1985 sobre viajantes sem-teto – porque agora ele é um deles, após ter perdido um emprego de jornalista. “Estou viajando em minha moto no sentido oeste. Acampei temporariamente no estado do Arizona, passei um tempo dormindo no campo, no chão, e também em alguns albergues pelo caminho. Sou um sem-teto temporário e também sem dinheiro. Três diplomas universitários que não servem para coisa alguma… Portanto, sento-me em frente do computador da biblioteca pública escrevendo minhas matérias e pensando no que irei fazer.” Durante algum tempo, ficamos em contato, mas nas tentativas que fiz recentemente não fui bem-sucedido.
A expressão “abalo sísmico” é usada em excesso, mas ela é cabível àquilo que aconteceu com os jornais norte-americanos. Em 2007, 55 mil jornalistas trabalhavam em tempo integral em quase 1.400 jornais diários; em 2015, o número de jornalistas era de 32.900, segundo recenseamento feito pela Sociedade Americana de Editores e pela Escola de Jornalismo e Comunicação de Massa da Universidade Internacional da Flórida. Esse número não contempla os planos de demissão voluntária e as demissões do outono passado que atingiram os jornais Los Angeles Times, The Philadelphia Inquirer e o Daily News, de Nova York, entre outros, e semanários e revistas, como a National Geographic.
Durante a maior parte do século passado, os jornalistas podiam confiar na estabilidade de suas carreiras. Os jornais eram um intermediário entre os anunciantes e o público; era como se suas impressoras imprimissem dinheiro. O benefício desse quase-monopólio era que as redações estavam apinhadas de repórteres e editores, a maioria deles, defensores fervorosos da criação de um jornalismo que fizesse a diferença em suas comunidades. Muitas vezes significava proteção sindical, emprego vitalício e pensões. Jornais como o Sacramento Bee orgulhavam-se, durante as novas contratações na década de 80, que mesmo durante a Grande Depressão o jornal jamais demitira jornalistas.
Tudo isso são coisas do passado. A extensa grade de redações locais está encolhendo – somente em 2009, 105 jornais foram fechados – esfacelados pela ascensão da internet e o declínio dos anúncios gráficos e a forte migração dos anúncios classificados para a Craigslist [uma rede de comunidades online centralizadas que disponibiliza anúncios gratuitos aos usuários]. Entre 2000 e 2007, mil jornais perderam 5 bilhões de dólares [cerca de R$ 19,5 bilhões] para essa rede, segundo estudo feito em 2013 por Robert Seamans, da Escola de Administração da Universidade Stern, de Nova York, e Feng Zhu, da Escola de Administração de Harvard. A queda dos números de circulação também foi significativa.
Jornalistas mais velhos custam mais caro
E as coisas podem ficar muito piores, segundo Nicco Mele, um ex-executivo do Los Angeles Times. “Se os próximos três anos se parecerem com os últimos três anos, acho que vamos olhar para os 50 maiores jornais metropolitanos do país e avaliar que algo em torno de um terço ou a metade deles irá desaparecer”, disse Mele, que hoje é professor na Escola de Jornalismo da Universidade de Annenberg, na Califórnia do Sul, numa entrevista recente ao Centro Shorenstein, da Universidade de Harvard.
Nesse meio tempo, o que ainda sobra de jornalismo impresso está numa transição, metamorfoseando-se numa rede desatada de conjuntos digitais ocupados por uma divisão de jovens freelancers mal pagos, malandros de teclado, entusiastas do Twitter e adivinhos das redes sociais. Sumiram as redações apinhadas de gente. E, em muitos casos, também sumiram os jornalistas mais velhos.
Em 2012, entre os comentários publicados no site de mídia JimRomenesko.com, R.G. Ratcliffe, que trabalhou durante 33 anos em jornais – do Houston Chronicle ao Florida Times-Union – perguntou: “Talvez eu tenha perdido alguma coisa, mas alguém já fez uma matéria sobre como as demissões de redações da última década foram um dos maiores exercícios de discriminação de idade na história dos Estados Unidos?”
Alguns jornalistas entraram com ações judiciais contra a discriminação de idade, mas são casos difíceis. Em 2012, a repórter Anne Amato, do Connecticut Post, que na época tinha 64 anos, alegou que o jornal queria “se livrar de seus repórteres mais velhos”. Ela perdeu a ação. No outono passado, um júri concedeu 7,1 milhões de dólares [cerca de R$ 27,5 milhões] a T.J. Simmers, ex-colunista do Los Angeles Times, de 66 anos. Mas no início deste ano a decisão foi rejeitada pelo tribunal de recursos.
Parte das explicações dadas para o êxodo de veteranos é cultural. O jornalismo da velha guarda era um ofício e o jornalista tradicional considera a atual marca de um jornalismo de personalidade, com sua ênfase em textos de blogs, agregando o trabalho de outros e organizando uma presença constante das redes sociais, uma coisa simplesmente estranha. E o pessoal do primeiro escalão partilha desse preconceito. Um editor de uma importante publicação de circulação nacional – e que tem bem mais de 40 anos – confessou-me que resiste a contratar jornalistas mais velhos porque “eles estão presos à mentalidade de fazer uma matéria por semana” e não estão dispostos a usar as redes sociais. Os jornalistas mais velhos também custam mais caro, o que muitas vezes os torna os primeiros a serem demitidos ou a receberem a oferta de um plano de demissão voluntária.
Cambaleando rumo a uma aposentadoria antecipada
Mas a mudança também é mais profunda e mais sistêmica. Assim como a história de Willy Loman, rejeitado em sua progressiva meia idade, a história dos jornalistas descartados hoje é, basicamente, uma parábola sobre a forma pela qual a nossa economia, toda a nossa maneira americana de ser, suga as pessoas até ficarem secas e as joga fora quando seu valor cultural e econômico diminui. Muitos trabalhadores mais velhos, e não apenas jornalistas, sofrem com isso. Entre os que fazem parte da chamada recuperação, cerca de 45% dos que procuram emprego com idade superior a 55 anos já o fazem há seis meses ou mais, segundo o Escritório de Estatísticas de Trabalho.
Mas há uma diferença importante entre os outros trabalhadores e os jornalistas – quando estes são demitidos, a comunidade sofre. “Você sabe quem é que gosta da atual falta de jornalismo? Os políticos. Os empresários. Ninguém mais os está vigiando”, diz Russ Kendall, repórter fotográfico e editor pela vida toda que atualmente é auto-empregado numa pizzaria.
Ainda há jornais impressos – e websites – produzindo um jornalismo local heroico. Mas é evidente que a perda de uma experiência de várias centenas de anos de redações por todo o país está ferindo a democracia norte-americana. O impacto que isso teve sobre essa geração de talento – pessoas no apogeu de suas capacidades, com 40 anos ou mais, despreparadas para navegar por paisagens transformadas – é menos conhecido. Suas vidas estão entrelaçadas com a história dos bens públicos.
Muita gente mudou de carreira e está se virando bem – no papel. Mas se você falar com eles, muitos vão dizer que sentem saudade da redação. Outros continuam militando, fazendo freelance num mercado em que a remuneração despenca. Alguns dirigem carros para o Uber; outros saem cambaleando rumo a uma aposentadoria antecipada, perguntando-se se darão a volta por cima.
Frequentemente, os jornalistas procuram uma pessoa emblemática para ilustrar uma matéria. Mas, às vezes, não há uma única personagem que tenha uma linha de continuidade. E às vezes há 22 mil.Estas são algumas de suas histórias.
“Nunca descobri a maneira de passar para o escuro”
Em 1977, um pequeno jornal diário de Ohio contratou-me por um salário líquido de 90 dólares por semana (cerca de R$ 350). Em 1980, fui dirigindo até a Califórnia em busca de emprego. Vivi como um sem-teto, em minha caminhonete Datsun, por três meses, até que o Sacramento Bee me contratou. Naquela época, era possível fazer isso. Na redação, sentei-me ao lado de Hilary Abramson. Ela fumava umas cigarrilhas francesas. Pouco depois, eu estaria fumando cigarrilhas com ela, nos nossos respectivos lugares. Naquela época, isso também era possível. Nunca conhecia um repórter com tanta energia: Hilary Abramson praticamente levitava.
Na década de 80, ouvi, por acaso, que Hilary Abramson estava fazendo reportagens sobre temas que cobriam desde abusos, por parte da polícia, a um programa de albergues que foi declarado inconstitucional pela Suprema Corte do estado da Califórnia em consequência de sua matéria. Ela escreveu o primeiro perfil importante de Rush Limbaugh, que na época era apenas uma personalidade do rádio local [e hoje é um comentarista político que defende posições direitistas]. Depois da década de 80, ela foi secretária de redação do Pacific News Service e depois, repórter especial financiada por fundações.
Aí, o dinheiro acabou. Ninguém a contratava. Ela põe a culpa na idade. Assim como a maioria dos jornalistas que entrevistei, ela disse que isso nunca foi dito explicitamente, e sim, insinuado. “Disseram-me que eu era ‘excessivamente qualificada’ para alguns trabalhos de edição”, disse-me Hilary Abramson quando nos sentamos e conversamos, no verão passado. “Levei em conta a questão da idade, no trabalho. Eu iria pedir um salário realista, que os jornalistas mais jovens não iriam esperar.”
Agora com 70 anos, Hilary Abramson foi freelancer. Uma revista deu-lhe uma tarefa investigativa. Quando chegou o contrato, após meses de trabalho, ele incluía uma cláusula que dizia que “a responsabilidade era inteiramente minha”. O editor disse que essa nova política era orientada por advogados. “Eu estava tratando de um assunto controvertido que poderia incorrer na ira de uma entidade com bastante dinheiro. Tive que deixar pra lá. Trabalhei de graça”, disse ela. E a história nunca foi contada.
“Desde o começo, eu sempre soube que nunca seria boa trabalhando por conta própria. Não sou uma empresária – só quero fazer o meu trabalho. Entre os repórteres com quem trabalhei, poucos entendiam de negócios. Uma coisa que nunca levei em consideração foi o fim dos jornais. É como se você estivesse enterrando alguém que você ama. Fico paralisada e irritada. Nunca descobri a maneira de passar suavemente para o escuro.”
“Quem está ganhando dinheiro com a internet?”
Os dias, segundo ela, podiam ser muito vazios. “Nós não estávamos preparados – mesmo nós, que passamos anos ouvindo pessoas se lamentando profundamente quando aconteciam coisas ruins com elas. Nós tínhamos a nossa felicidade. O que nos fez pensar que ela duraria para sempre?”
Ele tem 57 anos e trabalhou por mais de trinta para um jornal do Meio Oeste com circulação de 20 mil exemplares. Ele assinou um plano de demissão voluntária no verão passado; uma quarta parte dos repórteres, fotógrafos e editores foi demitida.
Assim como muitos outros jornalistas diminuídos em suas carreiras, ele pediu para ficar anônimo porque teve que abrir mão de seu direito à liberdade de expressão para conseguir um bônus de 18 semanas em seu acordo de pagamento. “Em 10 minutos, eu estava acabado”, disse-me ele sobre a reunião ao final da qual lhe disseram que estava terminado. Em nome do profissionalismo, ele trabalhou o resto da semana para concluir seus compromissos.
“Tenho um medo profundo do que está acontecendo com o jornalismo. Ninguém mais vai fazer o que nós fazemos. Nós criamos uma comunidade. A televisão e o rádio só mostram as coisas espetaculares. Não mostram as reuniões do conselho escolar ou o sistema de drenagem local. Se a sua comunidade decidir passar a fazer a coleta de lixo a cada duas semanas, a televisão não vai aparecer.”
Ele se pergunta como seu antigo jornal irá sobreviver, pois o número de anunciantes encolheu. “Quem está ganhando dinheiro com a internet? Ninguém vai pagar 100 dólares (R$ 390) por semana para receber o jornal – ou seja lá quanto vai custar, pois a publicidade não vai cobrir. Mas se o jornal fechar, os Estados Unidos também estão fechando. ‘Que diabos aconteceu? Nós precisamos disso’.”
“Que tipo de monstro criei?”
Pela maioria das coisas que escreveu, John Koopman divulgava matérias fortes, na linha de Charles Bukowski, redigidas como um bom Hemingway, para o jornal San Francisco Chronicle. Passou quase um ano rodando em carros de polícia para fazer um seriado chamado “The Badge” [O distintivo]. Já para fazer “Skin” [Pele], ele mergulhou na cultura de sexo da cidade: cabarés de strip-tease, lançamentos de filmes pornográficos e danceterias como a Bondage A-Go-Go. Também se incorporou como jornalista aos fuzileiros navais norte-americanos no Iraque em três anos diferentes. Quase foi despedaçado por duas vezes e viu um cabo ser morto, a três metros dele, por um franco atirador.
Em 2009, a Chronicle o demitiu, junto com trinta outros funcionários da redação, somando-se a uma centena de planos de demissão voluntária no início do ano. “Não consegui ser chamado para lugares que não teria desprezado quando era mais jovem”, diz Koopman sobre a questão da idade com a qual se deparou quando procurava um novo emprego em jornalismo.
Ele tinha a mulher e um filho adolescente e não tinha para onde ir. “Você faz o que tem que fazer”, lembrou. “Veste as calças e vai à luta.” Em 2011, tornou-se subgerente do Hustler Club [um cabaré de strip-tease], em São Francisco. “Eu só gostaria de ter começado a trabalhar no cabaré antes de me tornar jornalista, pois teria feito um trabalho muito melhor”, disse Koopman, atualmente com 57 anos. “Você aprende mais sobre a natureza humana naquele tipo de ambiente do que jamais aprenderia com um notebook na mão.”
Seu senso de justiça social levou-o a procurar garantir que as trabalhadoras fossem tratadas com respeito. Ele tinha que parecer duro. Talvez o ajude o fato de raspar a cabeça. Vez por outra tinha que usar os músculos para expulsar cafetões e traficantes de droga. “Acabei me dando conta que estava começando a ter um transtorno de personalidade antissocial”, confessou. Contou a história de um freguês abusado que ele expulsou. O homem queria acabar de comer o sanduíche. “Pensei: ‘O que é a pior coisa que posso dizer?’ E disse: ‘Eu f… sua mãe com esse sanduíche’.” Na porta, o homem atirou o sanduíche contra Koopman, atingindo-o na perna. Se o freguês não se tivesse mandado, teria sido uma “cena de homicídio”, disse Koopman. “Depois, sentei-me no escritório e fiquei pensando: ‘Meu Deus, o que é que eu acabei de fazer? Acabei de dizer a um cara que ia f… sua mãe com o sanduíche. Quem sou eu? Que tipo de monstro criei aqui?’”
“A posição das mulheres é desproporcional”
Então, decidiu sair – em 2013 – e começou a dirigir carros para o Uber. “Eu tinha muita raiva”, disse Koopman a respeito de sua frustração inicial com o infame trânsito da região de Bay Area. Talvez ainda houvesse uma raiva latente em relação aos executivos do San Francisco Chronicle. “Acho que o jeito que o karma funciona é que você tem que viver com você mesmo. Não sou eu que vou trazer justiça ao universo do karma. Mas, por Deus, espero que alguém o faça.” No entanto, em pouco tempo John Koopman encontrou a paz atrás do volante. Ele dirige de 30 a 50 horas por semana. “Atualmente, sou tipo ‘Seja o que for’. O trânsito não me irrita mais; ou é pesado ou não é. Você não pode fazer nada a respeito dele. É quase como uma terapia.”
Juntando a remuneração do Uber aos rendimentos de sua mulher, “temos o suficiente para nos virarmos”. No futuro, “Koop”, como ele é conhecido pelos antigos colegas, quer escrever um livro sobre o tempo que passou no cabaré de strip-tease. Outra ideia que tem para um livro é sobre gays nas forças armadas. Mas no momento ele está indeciso sobre o ato de escrever. “Eu ainda adoro contar histórias. Do jeito que as coisas aconteceram, não tenho certeza do quanto me preocupo se elas acabarem saindo. Às vezes, a vida é mais sobre o que você faz hoje – as relações que você tem com outras pessoas. Às vezes, a história é apenas algo que você conta a seu filho. Ou alguma coisa que você publica. Desde que você faça uma dessas coisas, você expulsa a besta. Eu gostaria de continuar trabalhando num jornal – realmente gostaria. Porém, ao mesmo tempo, eu talvez tivesse sido mais saudável não o fazendo.”
Desde 2012, quando Lesley Guth conseguiu o diploma em aconselhamento psicológico, ela vem passando os dias examinando cuidadosamente as alegrias e as lutas das pessoas, tentando ajudá-las a entendê-las. É uma atividade que reflete seu trabalho em jornalismo, com a ênfase em ouvir, a empatia, as entrevistas com pessoas, mas com uma diferença digna de nota. “Sendo uma mulher mais velha, a minha experiência é considerada a de uma terapeuta”, disse Lesley Guth, que tem 55 anos. Não é esse o caso numa redação, de onde ela saiu em 2009 depois de um plano de demissão voluntária no San Francisco Chronicle. “Ser mais velha e ser mulher são coisas que não são valorizadas em jornalismo.”
Lesley Guth trabalhou em dez jornais em seus mais de 20 anos na indústria jornalística. Em todos eles, a maioria dos principais editores “era de homens brancos, idosos” e muitos deles continuaram, apesar dos cortes. “Nunca houve igualdade, no jornalismo, para mulheres e minorias.” Ao longo da variedade de entrevistas que eu fiz, sempre houve uma forte sensação de que as mulheres fossem diminuídas em seu trabalho mais frequentemente que os homens. “Dispomos de muitas informações reveladas que sugerem que as redações de jornais retrocedem para uma situação de dominação por pessoas mais velhos, mais brancas e do sexo masculino”, disse Melissa Nelson, diretora do Newspaper Gild num e-mail. Mas não há números concretos, acrescentou.
Um pouco de qualificação veio de Frederick Kunkle, corresponsável pela edição do Washington-Baltimore News Guild, que também é repórter do Washington Post. Como parte de um processo por reclamação, o jornal forneceu números “limitados”, em 2012, para 313 empregados – mas mesmo esse conjunto de dados “falhos” mostrou um padrão de gerenciamento que enfraquecia as mulheres, assim como pessoas com 40 anos ou mais.
Os empregados foram classificados numa escala de um a cinco – um seria o pior. 54% do grupo tinha mais de 40 anos, mas eles representaram 64% daqueles que ficaram abaixo de três. “Dentro da categoria dos mais velhos classificados abaixo de três, a posição das mulheres é desproporcional”, disse Kunkle. “Para cada quinze mulheres classificadas abaixo, apenas dez homens o são.” Reciprocamente, 22 dos 33 que se classificaram acima de quatro são homens “numa redação que é, predominantemente, feminina”.
A sensação de ter sido enganado durante anos
Uma mulher, demitida do Post, disse-me que sempre recebia “boas avaliações e muitas vezes recebia aumentos” durante todos os anos em que trabalhou no jornal. Aí, de repente, sua classificação caiu. Um dia depois que o gerente lhe disse que estava sendo demitida ela ganhou um prêmio de jornalismo.
Em 2012, quando o editor de fotografia Russ Kendall saiu do jornal The Bellingham Herald, no estado de Washington – o último de seus muitos trabalhos em jornalismo –, ele abriu uma empresa de pizza artesanal, a Gusto Wood-Fired Pizza Catering. Com um forno ambulante, ele vende suas mercadorias em mercados e casamentos. “Estou ganhando duas vezes mais do que ganhava como fotógrafo de jornal.” E, em 2014, Kendall fundou um grupo, no Facebook, chamado “Qual é seu plano B?” É “um site para jornalistas que foram demitidos, para os que ainda não foram demitidos – que são todos os outros – e para os que já saíram para criar um plano B com sucesso”, disse ele.
Atualmente, conta com 6.200 associados. “Um camarada tornou-se médico. Outro começou uma cafeteria em Washington que acabou se tornando um dos lugares preferidos de Obama.”
Passeando pelos textos postados no site, a gente se sente como se estivesse dando um enorme abraço. Muitos associados compartilham um sentimento de um objetivo perdido. Kendall descreveu a atitude de muitos jornalistas: “Não é só o que eu faço. É o que eu sou. Foi assim que me senti, com certeza, por muito tempo.” Ele também fica irritado com a ganância dos jornais.
Durante décadas, Wall Street [centro financeiro norte-americano] criou expectativas insensatas. Na década de 80, as dúzias de jornais da editora Gannett tinham margens de lucro prévias entre 20 e 30% – o que era comum para os jornais naquela época. “Se você estudar administração, você irá aprender rapidamente que se conseguir pagar suas contas e tiver 10% de lucro, você é um sucesso absoluto”, disse Russ Kendall.
No início dos anos 2000, os jornais ainda conseguiam lucros obscenos porque eram monopólios regionais. Mesmo agora, muitos jornais “estão apenas tentando aliviar a redução de valores por alguns centavos”, disse Kendall. “Fiquei deprimido vendo pessoas de quem gosto perderem os empregos. Comecei a ter a sensação de ter sido enganado durante todos esses anos. É verdade que fizemos um bom trabalho, mas no final foram sempre os contadores e as autoridades financeiras que saíram ganhando.” E agora os trabalhadores estão pagando por isso: “Parece que o pessoal lá de cima não está perdendo os empregos. Mas nós estamos.”
“Velho” significa um repórter com mais de 30 anos
Portanto, Russ Kendall voltou as costas para seu velho ofício e começou a fazer pizzas, um emprego que “me parece mais honesto do que estar envolvido por aquilo que nos dias de hoje passa por jornalismo. Eu costumava dar pizzas gratuitamente a qualquer jornalista que fosse demitido. Tive que parar porque agora são muitos.”
Por natureza, muitos jornalistas são estranhos. O emprego recompensa os insensíveis e os persistentes e aqueles que não começam como um lobo solitário malandro acabam dessa maneira. “Há uma adolescência perpétua em ser um repórter”, explicou meu colega Bruce Shapiro, diretor do Dart Center for Journalism and Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. “No noticiário do dia-a-dia, seu trabalho é de prazo para prazo, de um dia para o outro. T.S. Eliot chamava-o o ‘êxtase dos animais’. Viver num eterno presente. Os repórteres vivem num eterno presente.”
Este estilo de vida muitas vezes não é bom para qualquer tipo de relacionamento pessoal. Os jornalistas constituiriam uma existência isolada, exceto pelo fato de que uma redação é uma tribo para estranhos. Talvez seja por isso que muitas das pessoas que entrevistei não se sentiam restringidas. O jornalista expulso de uma redação é jogado numa órbita solitária. Falei sobre minha teoria com Bruce Shapiro, cujo trabalho, no Dart Center, ajuda a preparar jornalistas para fazer a cobertura de traumas (e também, segundo dizem amigos jornalistas, ajuda a darem conta de seus próprios traumas durante o processo). “Acho que ser o estranho é parte da mitologia”, disse Bruce Shapiro. “E, de repente, acontece que a tribo não protege você contra a economia; não protege você contra os patrões.”
Para muitos jovens jornalistas, essa realidade é a única que conheceram. Alguns deles são da época do universo dos freelancers, no qual a redação é uma coisa do século passado. Porém, mesmo nas redações com enfoque digital, cheias de caras novas, onde “velho” significa um repórter com mais de 30 anos, eles sentem a solidão. E, embora muitos deles estejam dispostos a enfrentar o desafio, pagam o preço da perda de apoio e orientação, principalmente quando o talento dos mais veteranos for expulso da área.
O jornalismo digital está amadurecendo
Eu disse a um jovem jornalista (que pediu para ficar anônimo) o quanto profissionais amadurecidos me tinham orientado no início de minha carreira. “Exatamente”, ele respondeu. “Eu estou com 24 anos e sinto-me como se já fosse um dos melhores jornalistas do estado. E, definitivamente, não me deveria sentir assim, mas isso é porque os mais velhos vão diminuindo. A coisa de que eu mais gostaria seria estar cercado por pessoas que pegassem o meu trabalho, cortassem e emendassem, mostrando-me a maneira pela qual ele poderia ser melhor.”
Em 2009, Barbara Ehrenreich fez o discurso de formatura na Escola de Jornalismo de Berkeley, na Universidade da Califórnia. “Como é que você acha que alguém se sente sendo um trabalhador autônomo?”, perguntou. “Passei um bocado de tempo com trabalhadores de fábricas de papel, com operários da construção civil, com mineiros… Então, deixem-me ser a primeira pessoa a dizer-lhes: Bem-vindos à classe operária norte-americana.”
Foi um conselho sombrio. Mas, finalmente, talvez os tempos estejam mudando. À medida que o jornalismo digital vem ocupando seu lugar no universo das novas mídias – ajudado por uma safra de novas publicações exclusivas para a internet –, os jornalistas mais jovens começam a exigir o tipo de proteção no trabalho, salários decentes e solidariedade da redação de que muitos de seus colegas mais velhos já desfrutaram.
No ano passado, os trabalhadores votaram pela filiação dos sites Gawker, Vice, Salon e ThinkProgress ao sindicato Writers Guild of America East, da central sindical AFL-CIO. No mês de janeiro, a administração do jornal The Huffington Post reconheceu voluntariamente a filiação de 262 de seus empregados ao Writers Guild of America East – WGAE. O sindicato vem negociando “compensação, benefícios e estabilidade” para seus associados.
O sindicato NewsGuild representa a redação digital da edição norte-americana de The Guardian e representava, até o mês de janeiro, a rede Al Jazeera America, que fechou (desde que soube do fechamento, um grupo de repórteres se juntou e criou um website, ajudando-se, entre si, a encontrar empregos). As pessoas que se organizam nos veículos de jornalismo digital o fazem pelo mesmo motivo que as pessoas o faziam há uma geração, disse Gabriel Arana, ex-editor de mídia do Huffington Post que está envolvido com o trabalho sindical. “Muitas dessas empresas da nova mídia sentem-se como se fossem empresas de tecnologia.
Entretanto, ter um lanche de graça no trabalho representa bem menos do que contar com uma aposentadoria ou um salário decente com que você sustente a família. O jornalismo digital está amadurecendo. Esse pessoal quer estabilidade para poder fazer disso uma carreira.”Contudo, alguns jornalistas mais jovens preocupam-se com o dia distante em que completarem 50 anos. “Se tantos jornalistas talentosos estão saindo”, disse o repórter de 24 anos que entrevistei, “o que é que jovens como eu podem esperar?”
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Dale Maharidge é professor de Jornalismo e escritor