A versão oficial sobre o atentado no Riocentro, em 1981, foi desmascarada imediatamente por um esforço de reportagem. A equipe do Jornal do Brasil que cobria o caso reconstituiu a cena e demonstrou que não havia a menor possibilidade de existir uma bomba na parte interna da porta do Puma em que estavam o sargento e o capitão atingidos pela explosão: naquele tipo de carro não havia espaço entre a porta e o banco, onde, de fato, o sargento armava uma bomba, que acidentalmente explodiu no seu colo. Ele morreu, o capitão ficou gravemente ferido mas sobreviveu, teve as promoções de praxe e está vivo até hoje.
Estávamos ainda sob ditadura, sofrendo as ações de grupos que o general Ernesto Geisel classificou como “bolsões sinceros, mas radicais”, os militares da linha dura que confrontavam a política da abertura “lenta, gradual e segura” e que continuaram a atuar durante o governo João Figueiredo. A investida no Riocentro, no show do 1º de Maio, seria a mais ousada até então e, se bem sucedida, teria provocado uma tragédia.
A versão oficial perdurou durante muito tempo, mas jamais convenceu ninguém, e o JB, que pela reportagem ganhou o Prêmio Esso principal daquele ano, contribuiu decisivamente para mostrar que o rei estava nu.
Esforços de reportagem assim são cada vez mais raros nesses tempos em que o jornalismo se submete a uma rotina que se rende aos releases das assessorias de imprensa e à palavra das autoridades. Mas existem, e o exemplo mais recente foi dado por Aydano André Motta, na coluna “Panorama Carioca”, do Globo de sábado (30/5, ver aqui). Duvidando da versão oficial sobre o assassinato do médico Jaime Gold – morto a facadas em 20/5, quando pedalava, no início da noite, pela Lagoa Rodrigo de Freitas –, em que o delegado responsável dava o caso como encerrado e citava o depoimento de uma testemunha que teria reconhecido o autor do crime, o jornalista tomou uma providência elementar: mais ou menos no mesmo horário, foi até o local em que a testemunha trabalha – um posto de gasolina, que, como ressaltou, “não fica em frente ao local exato do crime, mas numa diagonal” – e de lá, com seu celular, fotografou a partir do ângulo de visão do frentista.
A distância de quatro pistas de trânsito, mais o canteiro central, e a precária iluminação demonstram a absoluta impossibilidade de alguém reconhecer quem quer que seja naquela situação. Mais ainda se o médico estivesse pedalando na direção do Túnel Rebouças, como é o mais provável: nesse caso, quem o atacou estaria de costas para a testemunha que o teria identificado.
Repórteres “obedientes”
Reportagens são feitas de dúvidas que geram perguntas, frequentemente incômodas: além de esclarecer o trajeto que o médico fazia, seria preciso indagar – como faz Aydano em seu artigo – como é possível que o suposto assassino tenha pedalado da Lagoa até a favela do Jacarezinho, na Zona Norte, passando por bairros da Zona Sul como Humaitá, Botafogo, Flamengo e pelo Centro: como é possível que não tenham identificado até agora qualquer imagem “de um jovem numa bicicleta caríssima, nas centenas de câmeras em operação pelo longo caminho”.
O artigo põe a dúvida que deveria ter orientado o trabalho de reportagem desde o início. Por que não foi assim? Em parte, certamente, pela orientação editorial do jornal, que destacou a morte do médico no alto da primeira página e lhe dedicou nada menos do que cinco páginas internas, além de aproveitar para reiterar, em editorial, a defesa da redução da maioridade penal. Se houvesse interesse em investigar, provavelmente uma das primeiras providências teria sido esta que o colunista tomou.
Mas a esse motivo ideológico se associa outro, que diz respeito às rotinas profissionais adotadas nas empresas jornalísticas de modo geral. Como tantos jornalistas experientes, Aydano diz que os repórteres, em todas elas, vêm se tornando “obedientes”: não ousam mais, contestam pouco. “Lembro que o [José Mariano] Beltrame [secretário de Segurança] não divulgou o nome do soldado que matou aquele garoto no Alemão [o menino Eduardo de Jesus Ferreira, em abril deste ano]. E até hoje ninguém sabe o nome dele”, afirma. Mas reconhece que isso ocorre também por causa das condições de trabalho no jornalismo atual: se um repórter tem três, quatro pautas para cumprir por dia, é muito difícil fugir a essa regra.
Por ter trabalhado na reportagem de cidade durante praticamente toda a carreira, Aydano também cobriu alguns casos de polícia e diz que uma frase do ex-delegado Hélio Luz, chefe da Polícia Civil entre 1995 e 1997, o assombra até hoje: “Foi quando ele me disse que a gente tem a polícia que quer ter”. Por isso é tão fácil pegar o primeiro jovem negro para culpá-lo do crime, ainda mais se esse jovem tem tantas passagens pelo “sistema”.
Sobre a situação específica da Lagoa, diz que o local, embora turístico, tem segurança precária por causa de sua configuração específica: “É uma região que passa por três batalhões [da Polícia Militar] diferentes, então não é de batalhão nenhum: um empurra para o outro a responsabilidade”. Diante de um crime de grande repercussão como este, reforça-se o policiamento, que tende a afrouxar conforme o tempo passa, até que outra tragédia aconteça.
O sistema que sustentamos
O artigo circulou amplamente pela internet e recebeu muitos comentários elogiosos, que também criticavam a precipitação da polícia. Um deles condenava a pressa “da polícia e de parte considerável e marrom da imprensa, que por sua vez alimenta uma pressa de suposta origem na sociedade”, pela qual “ficamos sem justiça”, pois “um assassino pode continuar solto, desde que achemos que está preso; um inocente (em relação ao crime específico pelo qual é condenado) pode ser e continuar preso, desde que ‘se pareça com um bandido’. É esse o sistema que queremos? Se não for, por que o sustentamos?”.
Entre profissionais do direito, houve quem apontasse na declaração do secretário Beltrame, logo após a notícia do assassinato – “É inadmissível um crime como esse na Lagoa” – a origem da urgência na tentativa de dar o caso como encerrado, pegando o primeiro suspeito verossímil. Outra crítica é ao reconhecimento através de fotografia. “Existem regras para o reconhecimento pessoal no Código de Processo Penal”, comentou a desembargadora Simone Schreiber. “O sistema é aquele que vemos em filmes americanos: enfileirar pessoas com o mesmo biótipo atrás de um vidro espelhado. Antes a vítima ou testemunha tem que descrever o suspeito. Mas como as polícias não investem em salas de reconhecimento, simplesmente se flexibiliza a lei.”
O coelho e a tartaruga
No texto em que demonstra a nudez do rei, Aydano diz que a investigação sobre o assassinato do médico “patina numa sucessão inacreditável de trapalhadas, que conjuga imperícia, açodamento e vaidade”. Uma das contradições é que a testemunha teria dito que um dos assaltantes era branco, enquanto os dois suspeitos presos são negros. Outra se revela nos comentários, depois apagados, que a delegada da 14ª DP, responsável pela região onde ocorreu o crime, fez numa rede social, questionando a condução das investigações:
“‘(A testemunha) disse que não tinha condições de reconhecer (os responsáveis). No dia seguinte, já em outra DP [a Delegacia de Homicídios] (…) reconheceu (um dos jovens) em fotos. Pois é, ele (adolescente reconhecido pela testemunha) não foi pego na noite (do crime). A tal testemunha foi ouvida (por policiais da 14ª DP na noite do assassinato) e não tinha condições de reconhecer ninguém. Enfim… Segue o baile…’”.
Na abertura do artigo, o jornalista lembra de uma famosa piada sobre a eficiência dos investigadores do FBI e da Scotland Yard em comparação aos métodos dos policiais brasileiros. Trata-se de uma disputa sobre quem encontraria mais rápido um coelho num bosque. O policial brasileiro consegue a façanha, mas apresenta uma tartaruga, cheia de escoriações, que não pára de berrar: “Eu sou um coelho! Eu sou um coelho!”.
Aydano retoma a imagem da piada na conclusão:
“Pelo bem do Rio de Janeiro, crimes famosos e anônimos, contra ricos, pobres e remediados precisam ser esclarecidos, para que a Justiça possa prevalecer. O que jamais acontece com tartarugas no lugar de coelhos”.
Acrescentaria depois: pelo bem do jornalismo, inclusive.
Ironicamente, a coluna que desmonta a versão oficial sobre o crime foi editada ao lado de um enorme release da Prefeitura disfarçado de reportagem, com o selo “Rio 2016”, sobre as providências do programa “asfalto olímpico”, de recuperação das esburacadas ruas da cidade.
Coisas do Globo.
Leia também
‘O Globo’ & ‘Extra’. Uma empresa, dois jornais. Um abismo – S.D.M.
Entrevista/ Octavio Guedes. ‘Jornalismo não é concurso de Miss Simpatia’ – S.D.M.
***
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)