Pode ser muito cedo para dar a história como escrita, mas me atrevo a dizer que o desenho político do Brasil de hoje foi traçado por dois acontecimentos capitais: as Jornadas de Junho de 2013 e a investigação da Operação Lava Jato, deflagrada em 2014. Em ambos, a imprensa foi levada de roldão.
Nos protestos de rua, os meios (mas não só eles) foram atropelados por fenômenos de massa que não conseguiram antever e demoraram a compreender (se é que os compreendemos). É difícil acreditar que movimento de tal magnitude tenha sido gerado sem um período de incubação – e é inquietante que essa incubação tenha ficado fora do radar de quem escreve a crônica do dia a dia.
No segundo momento-chave, a revelação do esquema de corrupção da Petrobras, os meios ficaram longe do protagonismo registrado em outros escândalos, como o dos anões do Orçamento, o impeachment de Fernando Collor ou a revelação do mensalão. Na Lava Jato, quem deu a letra e pautou a cobertura foram o Ministério Público, a Polícia Federal e o juiz Sérgio Moro. Nunca antes tanta informação ficou concentrada em tão poucas mãos.
Mera coadjuvante
No papel de coadjuvante, a imprensa comeu na mão de fontes cevadas na conveniência do anonimato, relaxou controles, publicou manchetes baseadas em cacos de informação, reproduziu delações sem provas. Reinaram a estridência desmedida, a superficialidade, o desapreço pela exatidão, o despreparo profissional, a opção pelo sensacionalismo em vez da sobriedade.
Para o aprimoramento do jornalismo, porém, é necessário reconhecer que esses problemas estão longe de serem características destes tempos. São pragas antigas que, se ora arregimentam um exército de críticos e ganham a berlinda, o fazem mais em consequência da polarização nacional, inexistente no impeachment de 1992, do que por viés político da imprensa.
De novo no front – e certamente um agravante –, só a disrupção tecnológica que corrói a sustentação econômica do impresso e é matriz do enxugamento das redações e do descarte dos profissionais mais experientes (e, portanto, mais caros). Mesmo a crise econômica atual, que solapou a governabilidade de Dilma Rousseff, já era pano de fundo de outros escândalos.
É mistificação jogar os erros de cobertura na conta do antipetismo dos meios de comunicação, ainda que esse sentimento tenha crescido, adubado pelo próprio petismo, com suas propostas de controle ou sua estratégia de ataque permanente à imprensa. A perspectiva sectária pode ser útil a propósitos políticos, mas é um desserviço à atividade jornalística, cujos defeitos crônicos acabam escamoteados e identificados como viés ideológico de ocasião.
Essa visão não sobrevive a uma comparação meticulosa com coberturas passadas nem a uma avaliação desapaixonada do cenário, com seus ingredientes picantes que são matéria-prima de sonho para qualquer profissional: um esquema de corrupção de dimensões surpreendentes até para os padrões de um país sabidamente corrupto, uma investigação policial de enorme atração midiática, o envolvimento do partido há 12 anos no poder, confissões e delações fartas, prisões de figuras até então intocáveis.
Vigilância das redes sociais
Sugiro revisitar a cobertura feita pelos maiores jornais, mas substituir o elenco: em vez do triunvirato Dilma/Lula/PT nos papéis principais, entram FHC/Aécio/PSDB. Há quem acredite que o resultado seria substancialmente diferente. Eu não. Numa redação profissional, que vive do mandato concedido pelo seu leitorado, o apelo da história é superior a ideologias ou preferências partidárias.
É ingenuidade ou arrogância acreditar que a imprensa possa determinar a agenda, os rumos ou o humor de sociedades democráticas complexas como a brasileira, ainda mais agora, sob a vigilância estreita de redes sociais e canais de notícias alternativos. O chamado quarto poder, para usar o epíteto presunçoso que embasa muitos delírios de grandeza, só ganha ressonância e legitimidade quando está conectado com a sociedade à qual se dirige. É, pois, uma influência de mão dupla.
A imprensa não escreve sozinha a história de um país. Não é o caso de menosprezar seus erros nem sua influência sobre a opinião pública, mas tampouco é razoável atribuir-lhe mais peso do que ela realmente tem.
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Vera Guimarães Martins é jornalista e foi ombudsman da Folha de São Paulo, até abril de 2016.