A imprensa brasileira está indignada com a possibilidade de terminar em um grande acordo o escândalo provocado pela revelação dos procedimentos com que são financiadas as campanhas eleitorais no Brasil e compostas as bancadas no Congresso Nacional. A julgar pela sucessão de textos dedicados a condenar qualquer acerto para amenizar os efeitos da CPI dos Correios, em artigos, colunas e editoriais escritos ou difundidos por TV e rádio, a imprensa está sintonizada com o sentimento popular.
Levantamento feito pelo Instituto Vox Populi para a revista Época indica que 87% dos 2.003 entrevistados em 115 cidades nos dias 23 a 25 de julho se dizem informados sobre as denúncias de corrupção, 80% conhecem os principais suspeitos – apontando os deputados Roberto Jefferson (PTB-RJ), José Dirceu (PT-SP) e Paulo Cunha (PT-SP), o ex-presidente do PT José Genoíno e o ex-tesoureiro Delúbio Soares – e a maioria quer a punição de todos os citados no noticiário ‘com perda de mandato ou prisão’.
Assim, a julgar pela reação da mídia, não há a menor hipótese de vermos passar sob nossos narizes mais uma daquelas formas redondas com que na tradição política nacional são servidos os ajustes entre acusados e investigadores de crimes contra o erário. Mas é bom manter um olho aberto e desconfiar da sinceridade de alguns personagens que desfilam o presente roteiro. Como torcedores nos estádios de futebol, também no plenário das nossas casas de leis e nas salas de comissões de inquérito, muitos desses personagens engrossam as ‘olas’ quando as câmaras das emissoras de televisão apontam para eles, mas no momento seguinte se dedicam aos conchavos de todo dia.
‘Pizza’ condenada
Da mesma maneira, é comum ver certos temas ribombando em editoriais e artigos enquanto o noticiário vai murchando o ímpeto inquisitório, e o interesse do público vai sendo desviado para outros acontecimentos. É exercício interessante, por exemplo, comparar as reações da imprensa diante de dois fatos correlatos da nossa história recente: os sinais de um acordo destinado a limitar o alcance da CPI dos Correios, atual peça de força do noticiário, e o processo de esvaziamento da CPI do Banestado, que terminou pifiamente no em 27 de dezembro de 2004, sem quórum para a votação do relatório final, após uma longa batalha entre o PT e o PSDB pela inclusão de desafetos entre os acusados.
Dois entre os mais ruidosos parlamentares que aquecem o noticiário sobre o escândalo atual – a senadora Ideli Salvatti (PT-SC) e o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) – foram peões ativos no processo de esvaziamento da CPI do Banestado. Na medida em que ela ameaçava encher de tucanos o rol dos acusados, ele coletava apoios para incluir, na lista dos investigados, petistas poderosos como o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Ambos ajudaram a esquentar o ambiente político e igualmente foram decisivos no esvaziamento da CPI – que deveria apurar o envolvimento de pelo menos 137 políticos de praticamente todos os partidos, entre os mais de oito mil beneficiários de remessas ilegais para contas bancárias no exterior, que totalizaram 124 bilhões de reais.
A descoberta do esquema que tinha suas operações centralizadas no Banco do Estado do Paraná foi investigada pela Polícia Federal com apoio do governo dos Estados Unidos, por causa de evidências de relações entre o dinheiro desviado pela corrupção e remessas de narcotraficantes e movimentações possivelmente ligadas ao financiamento do terrorismo. Mesmo assim, tudo acabou em pizza: em 27 de dezembro de 2004, não houve quórum e a comissão pariu três relatórios, nenhum deles referendado por votação.
Naquela ocasião, durou pouco a indignação da grande mídia brasileira com o fim das investigações sobre o maior assalto aos cofres públicos já revelado desde a chegada dos portugueses a esta terra abençoada por Deus e bonita por natureza. Nos dias seguintes ao encerramento da CPI do Banestado pelo seu presidente, senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), o Estado de S.Paulo, Globo e Folha de S.Paulo ainda publicaram editoriais e artigos condenando a ‘pizza’ que selou a paz entre petistas e tucanos e permitiu destravar a agenda do Congresso, paralisada pela oposição durante quase todo o segundo semestre de 2004. Mas o noticiário político rapidamente se concentrou em outros temas e as manchetes foram progressivamente destinadas à economia.
Recheio indigesto
Mais uma vez, os sinais de que a forma arredondada está indo ao forno são acompanhados de textos indignados. Mas nada garante à sociedade que essa indignação irá persistir com a confirmação de uma solução negociada para a enxurrada de denúncias que tem envergonhado os brasileiros desde que um assecla do senador Roberto Jefferson (PTB-RJ) foi filmado embolsando três mil reais e se vangloriando das facilidades da corrupção.
Já correm apostas entre jornalistas sobre o número de cassados ao final da presente CPI. Os palpites se situam entre 12 e 24 punidos, menos da metade dos já citados como beneficiários do generoso publicitário Marcos Valério. Uns incluem ex-ministros na lista dos sacrificados, outros jogam as fichas num ataque maciço ao chamado ‘baixo clero’ dos partidos aliados ao governo.
Mas, se depender da disposição que a imprensa tem manifestado tradicionalmente para cobrar dos partidos um basta à corrupção e exigir uma reforma política profunda que mantenha a lama da corrupção em limites aceitáveis, ainda vamos mastigar muita massa com mussarela e orégano.
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Jornalista