O dia 29 de maio de 2021 vai ficar marcado por manifestações contra o governo do presidente Jair Bolsonaro que reuniram, em mais de 200 cidades dos 26 estados e do Distrito Federal, centenas de milhares de pessoas — cerca de 420 mil, segundo organizadores. Se os números muitas vezes não são precisos, embora a exatidão seja um excelente subsídio para os textos jornalísticos, basta aos profissionais de imprensa trabalharem com as evidências, com aquilo que veem.
Dez quarteirões da Avenida Paulista, por exemplo, foram ocupados por manifestantes. A vista aérea, durante a tarde e a noite do simbólico 29 de maio, mostrava milhares de brasileiros que, na luta por diferentes pautas relacionadas à Covid-19, foram reivindicar, gritar suas dores e desesperanças num momento em que o Brasil caminha para 500 mil mortes em decorrência da pandemia.
Assim, o “Fora Bolsonaro 29M” reuniu parte da população indignada com as recusas do governo federal, desde meados do ano passado, de comprar vacinas a partir de contatos feitos pela farmacêutica Pfizer, que estão sendo comprovados na Comissão Parlamentar de Inquérito agora em curso no Senado Federal.
Além disso, os protestos também tiveram como motivação: a desastrosa política externa brasileira, conduzida por Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores, que promoveu, juntamente com Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo e filho do presidente, uma crise diplomática com a China, fornecedora de insumos para a produção da CoronaVac — já que o impasse atrasou sobremaneira a chegada do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), principal insumo da citada vacina; as aglomerações promovidas pelo presidente, que se recusa a usar máscaras de proteção e apregoa o uso da hidroxicloroquina como medida eficaz de tratamento precoce — o que a ciência nega; o desemprego e a omissão da Câmara dos Deputados — sobretudo, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Casa – por não analisar nenhum dos mais de 110 pedidos de processo de impeachment, que poderiam afastar Jair Bolsonaro do cargo.
A fome e a pobreza, agravadas pelo valor irrisório do auxílio emergencial, também foram alvo dos protestos de manifestantes. Em razão da pandemia, com a crise econômica por ela gerada e a diminuição do benefício social cedido pelo Governo Federal nessa segunda rodada iniciada em abril, 61,1 milhões de pessoas devem viver em situação de pobreza em 2021 e 19,3 milhões na extrema pobreza, segundo dados de estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da USP.
E, inacreditavelmente, como se comportaram os três maiores jornais impressos do país — O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo — na cobertura dos atos Brasil afora? Leitores mais assíduos sabem que as primeiras páginas das edições dos jornais aos domingos têm, por costume, trazer informações de lazer e cultura, mas era necessário que o habitual fosse preterido em função do urgente. Os cartazes, as palavras de ordem e o luto somado à indignação deveriam estar nas capas. Não é preciso lançar mão de muitas métricas e critérios, normalmente adotados na análise crítica da mídia, para concluirmos que esse comportamento desaponta mediante o esperado do jornalismo em situações absolutamente fora de controle como a que vivemos.
Análise: Estadão e O Globo
N’o Estado de S. Paulo, por exemplo, em vez de uma manchete sobre o assunto que mobilizou a população nas ruas e nas redes sociais — segundo os organizadores do evento, 420 mil pessoas protestaram contra as mortes e a falta de vacina —, ganhou destaque a seguinte pauta: “Cidades turísticas se reinventam para atrair o home office”. Um título extremamente incômodo, desagregador e vazio para qualquer brasileiro que enxerga o cenário caótico atual. Não bastasse o destaque aleatório e desconexo com nossa realidade, a imagem em evidência traz um casal de agricultores sorrindo com seus filhos no colo, uma estranha tentativa de fazer o leitor se sentir confortável.
A única referência direta aos atos contra o presidente encontra-se quase no rodapé da primeira página do veículo e, mesmo assim, carrega um aspecto pejorativo implícito na construção frasal da chamada: “Milhares vão às ruas contra Bolsonaro e causam aglomeração”. Em meio à uma grave crise econômica e social causada pelo descaso governamental, abordar a falta de distanciamento social em um protesto necessário soa, no mínimo, desonesto.
A matéria em si, que ocupa somente a metade da página do jornal, tem o primeiro parágrafo marcado novamente por uma ênfase na aglomeração dos atos, com direito ao termo ‘protesto seguro’ dentro de aspas, carregando ironia e levando à descredibilidade do movimento. Apesar do tom, também expuseram os motivos das manifestações: “criticaram a falta de vacina, o negacionismo em relação ao enfrentamento da covid-19 e defenderam a retomada do auxílio emergencial…”. Além disso, utilizaram três imagens, como a de um manifestante sendo carregado por três policiais militares. Ainda assim, não é o suficiente. Não é o que esperamos de um veículo como o Estadão.
Se remetermos ao ano de 2015, podemos observar que o mesmo veículo cobriu de forma intensiva as manifestações contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Em 16 de março daquele ano, um dia após os atos de “Fora Dilma”, a manchete do jornal era: “Manifestação contra Dilma é a maior desde as Diretas-Já”, com direito a uma imagem aérea da Avenida Paulista coberta de pessoas e uma legenda enfatizando o movimento “pacífico”. Além disso, todos os títulos abaixo da matéria principal mencionaram a “corrupção do PT”, bem diferente do que vemos atualmente. Em 2016, ainda no governo Dilma, também optaram por uma angulação bastante explícita. A primeira página da edição de segunda-feira, após o fatídico dia 13 de março, mostrava a imagem dos manifestantes antipetistas na Paulista, sem legendas, apenas com a data no topo. Por onde andam essas coberturas tão minuciosas nos dias de hoje? Só valem quando “a bandeira não é vermelha”?
É inadmissível que um veículo da tradição do Estadão se torne tão omisso em um momento delicado como o atual. Jogar uma pauta para “debaixo do tapete” não é fazer jornalismo. É retrocesso. É relembrar tempos sombrios de uma ditadura recente, carregada de censura e superficialidades. Se em 2015 e em 2016 o veículo teve o compromisso em expor fotos de protestos, escancarar a opinião pública sem medo de reações contrárias, por que em 2021 mascara um acontecimento histórico em prol de notícias rasas e frias? Não se trata de polarizações, de escolhas entre esquerda ou direita. Nosso País está sufocado, está sujo de sangue e veículos que não se posicionam contra esse contexto são cúmplices do mesmo.
Já na primeira página do jornal O Globo, logo abaixo da palavra “oportunidade”, o nosso olhar é levado direto para manchete sobre o “reaquecimento do PIB”. A primeira página de um jornal não é composta somente por palavras, é interessante pensar nas imagens de destaque e entender que discurso está sendo construído. A fotografia em preto e branco com forte contraste é do cantor Gilberto Gil, em um gesto de braços cruzados sobre o peito, formando uma espécie de abraço ou escudo. A imagem não parece ter nenhuma relação com a manchete, mas é justamente o paradoxo da não correlação que provoca o sentimento de repúdio no leitor, até aquele mais desatento sabe qual era a pauta que deveria estar destacada.
A opção de O Globo, parte de um grande conglomerado de mídia, em silenciar os diversos atos que ocorreram no dia 29 de maio de 2021 em inúmeros estados do Brasil, só demonstra o lugar onde ele quer ser representado na história. E esse lugar não é o do jornalismo sério. Até a imagem publicitária que vem no rodapé da página parece provocar o leitor numa escolha editorial do jornal de dizer “sim, nós podemos e escolhemos invisibilizar milhares de brasileiros que se manifestaram, culpando o presidente Bolsonaro pela crise instaurada”.
Destaque internacional
Ironicamente, a mídia internacional ofereceu uma cobertura de maior complexidade e aprofundamento na repercussão do fato do que nossos próprios veículos hegemônicos. No exterior, 14 cidades registraram protestos no dia 29 de maio contra o presidente Jair Bolsonaro.
O jornal britânico The Guardian, por exemplo, publicou em sua página principal “Tens of thousand of Brazilians march to demand Bolsonaro’s impeachment”, traduzido para “Dezenas de milhares de brasileiros marcharam pelo impeachment de Bolsonaro”. O veículo estadunidense The New York Times também fez uma publicação bastante ácida, onde detalhou que a manifestação foi nacional e paralisou transportes, bancos e escolas: “O Brasil se mobiliza contra a austeridade”.
Folha de S.Paulo: cobertura razoável, aquém do necessário
Coube à Folha de S.Paulo oferecer a melhor cobertura dentre os três principais veículos da mídia hegemônica — ainda assim, passível de críticas. A manchete “Milhares saem às ruas contra Bolsonaro pelo país” ocupa espaço razoavelmente generoso na primeira página, com um breve resumo sobre os protestos e uma imagem do ato realizado na Avenida Paulista, próximo ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP).
O título sugere até uma certa ambiguidade: “pelo país” denota um sentido tanto de local, ou seja, o protesto alcançou dimensões nacionais, quanto de causa – nesse caso, os manifestantes teriam saído às ruas em defesa do país. Se o jornal não se encarregou de ser objetivo quanto a isso, que essa análise se permita fazer: ambos os sentidos levantados pela ambiguidade estão corretos.
A postura do governo atual vem potencializando a letalidade do coronavírus. São milhões de brasileiros à míngua, reféns do orçamento mal planejado pela equipe econômica. Por outro lado, no escândalo do ‘Tratoraço’, parlamentares do Centrão encheram seus bolsos. Além disso, a uma só canetada, Bolsonaro e seus pares aumentaram seus próprios salários e vão receber acima do teto do funcionalismo público. Portanto, sim: brasileiros saíram às ruas em todo o país e pelo país.
De volta à análise da cobertura da Folha, o jornal, assim como os demais, ressalta as aglomerações. Ora, a exemplo do que vimos nos protestos do Black Lives Matter, que eclodiram após o revoltante assassinato de George Floyd em Minneapolis, EUA, as pessoas se expõem porque têm urgência. Sem esquecer que a maioria usava máscaras e álcool gel. E isso não se pode comparar com os passeios despropositados que o presidente promove, sem máscara, desde o início da pandemia. Quem foi às ruas no sábado retrasado o fez por não aguentar mais ver, pelos quatros cantos do Brasil, e com toda a exposição midiática, o líder máximo da Nação promovendo aglomerações. Líder que não lidera, não pacifica, não soluciona, não agrega.
O jornal ofereceu um bom resumo sobre os principais acontecimentos dos atos capital a capital, com destaque para a violência sofrida por Liana Cirne, vereadora pelo PT de Recife. Porém, a matéria ocultou o caso de Daniel Campelo, que sequer estava no protesto e foi atingido por uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar pernambucana e perdeu o olho esquerdo. Além disso, o veículo também informou os leitores sobre os principais líderes, partidos, movimentos sociais e estudantis e centrais sindicais que organizaram as manifestações.
A Folha poderia ter contextualizado mais as pautas apresentadas nos protestos. Um resumo meramente declaratório das manifestações não está à altura do que elas representam, sobretudo durante uma pandemia sem precedentes. Talvez, tenha faltado ao veículo a ousadia de lançar um olhar mais atento ao movimento. Afinal, no ano passado, reivindicou para si o papel de defesa da democracia, subiu o tom crítico em relação ao governo e, em razão disso, sofreu e sofre ataques contra sua liberdade de atuação. Se as cores não são o verde e o amarelo instrumentalizados pela direita, o veículo escolhe, em certo sentido, se isentar outra vez diante de uma causa histórica?
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O Observatório de Mídia do Curso de Jornalismo da UFRRJ, coordenado pela professora Ivana Barreto, é produzido pelos alunos Lucas de Andrade, Luiz Eugenio de Castro e Pedro Henrique Cabo.