Para achar o mapa do Brasil nas letrinhas da imprensa é preciso focar no atalho das páginas, nem só políticas, econômicas ou variedades. É utilizar o olho como uma polaroid e ir fotografando as manchetes alternativas, que pode começar na piauí deste mês.
Que falta nos faz um país é o título de uma das matérias desfiando uma das canções de Aldir Blanc, que dá um curso de história contemporânea em oito linhas:
Madrugada ouço o choro de crianças baleadas
Que brincando, tombam na sala
Quilombolas, guajajaras machucadas
Nas florestas e favelas
Por um fio, equilibristas do nada
Que falta me faz meu país.
Que falta nos faz a paz
Que falta nos faz um país
Se a polaroid do leitor continuar registrando o país revista afora, o olho vai tremer junto com os livreiros na matéria Pânico nas Livrarias. Justo quando o mercado editorial começa a se recuperar o governo tributa em 12% chegando a 20% a capa daquele objeto que só rico lê — e por isso mesmo deveria ser barateado, quem sabe o pobre também gostaria…
Virando a página, dá vontade de desentender o país. Consciência de Acervo é tudo o que nossa memória histórica não tem. Na página dupla da Folha de S. Paulo de domingo ficamos sabendo que ninguém se interessou pela vasta coleção de livros de teoria e história da arte do crítico Rodrigo Naves. Apenas a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Escola Guignard.
Ainda bem que sua coleção de raridades não foi para Matosinhos em Portugal, agora alimentada com os acervos dos arquitetos Paulo Mendes da Rocha e Lucio Costa — não cabiam no Brasil. Para Matinas Suzuki Jr., o crítico Rodrigo Naves se declarou cansado, cada vez com mais dificuldade em conseguir alunos para seu curso de arte iniciado em 1989. Reclama que a mídia eletrônica engoliu o espaço da crítica de arte. “E, por ora, nenhuma publicação eletrônica obteve o alcance e a credibilidade dos veículos tradicionais impressos”. Assim, Naves encerra o seu curso.
Se ainda há fôlego para continuar na montagem do país, a vista ressalta a frase de Bolsonaro na matéria do Estadão de domingo, “o que eles querem é nossa hemorróida, nossa liberdade”. O olho envesga na hora, volta rápido a focar na matéria de Miguel de Almeida no Globo de segunda, lembrando que em 1917 o poeta católico Paul Claudel veio ao Rio como Ministro do governo francês. Trazia de secretário o compositor Darius Milhaud, que se esbaldava nas madrugadas grudado em Donga e João da Baiana, delirando com a música de Pixinguinha, Nazareth, Tupynmbá. Milhaud colou 28 melodias de músicas populares dos compositores cariocas — Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga, Flor do Abacate, de Álvaro Sandim, Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth etc., e assim nasceu seu O Boi no Telhado, referência a um tango de 1918 de José Boiadeiro.
A referência ao padre Antônio Vieira chama atenção no artigo do Estadão de domingo do ex-chanceler Celso Lafer. Trata do STF e da transparência das emendas do Orçamento no Congresso, e quem melhor define é um dos sermões do padre Antônio Vieira sobre os pecados da omissão e da consequência — esses últimos, aqueles que duram. Valter Hugo Mãe completa com Vieira. Na última revista do Valor, Eu &, o escritor português tem seu livro resenhado e o título, As Doenças do Brasil, é emprestado de um sermão do padre Vieira. Desta vez, Vieira cita as enfermidades trazidas pelos colonizadores: cobiça, ganância, espoliação, racismo, exploração de terras e pessoas.
Vieira não conheceu Bolsonaro nem a coprolalia — copro, fezes, lalia, fala, doença do uso descontrolado de palavras obscenas, como José Nêumane resume ao citar o formidável vocabulário de palavras chulas e palavrões do presidente. Numa coluna da Folha, Ruy Castro definiu a “hemorróida” enfiada na frase do presidente como um ato falho, “metáfora que precisa ser explicada por uma mente pervertida”.
A polaroid escapa da hemorróida mas cai na foto do um touro dourado às portas da Bolsa de Valores. Perdemos o curso de arte de Rodrigo Naves mas ganhamos o touro dourado. Para aliviar, a coluna de Sergio Augusto do Estadão nos manda escolher entre Tolstói ou Dostói, Drummond ou João Cabral, Machado ou Alencar. Só que o Brasil não fica entendido por completo se não tiver aquele trecho sobre o bando de Valdemar Costa Neto nos diários de Fernando Henrique Cardoso, “só vai lá [ao Planalto] pedir nomeações para posições onde ele possa ter vantagens, e vantagens alegadamente pecuniárias. É inacreditável.” As indicações do PL não podiam ser atendidas por “falta de gente competente, e que seja honesta…usam um fato nacional para extorquir dinheiro. É lamentável”.
A polaroid embaça com tanta sujeira, troca o olho pelo ouvido, quem sabe pelo som o Brasil se explica melhor. A Carta Capital dá um resumo dos gêneros mais ouvidos nas rádios brasileiras, o sertanejo é campeão. Depois, o pagode. E segue o pop, o forró, dance, black music, rap, pop/rock. O maestro Júlio Medaglia no Estadão reage, a boa música popular brasileira hoje só pode ser ouvida em circuitos alternativos – para ouvidos alternativos. “As milhares de rádios brasileiras têm suas programações submersas num mar de música dita sertaneja, que nada mais é que um bolerão brega de bordel de cais do porto de quinta categoria ou de falso pagode que não vale uma pausa de uma música do Cartola”.
Estamos no meio da tempestade sem ar, 745 milhões de árvores tombaram na Amazonia em um ano, e quem conduz a travessia da tempestade é o filósofo Leandro Karnal no Estadão: necessitamos de música. A Sala São Paulo vai reabrir no ano que vem com suas séries e 32 concertos da OSESP. O diretor artístico Arthur Nestrovski não cita Deus, mas explica o caminho, “Música acima de tudo e Beethoven acima de todos”. Karnal completa, o resto é caco dissonante. Karnal dá ao seu artigo o título O Som e a Peste, imaginando a Sala São Paulo como uma arca de Noé atravessando uma tragédia nacional. A nossa.
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Norma Couri é jornalista.