Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Quelle língua ist this one?

Dólar opera? PIB registra? Por que case em vez de ‘caso’? Câmbio tem stress? A soja é responsável?

A linguagem do jornalismo econômico é muito estranha, sim, e não por causa do famigerado economês. O idioma dos cadernos de Economia é muito menos técnico do que se diz. É infinitamente mais próximo da fala comum do que o código usado em matérias sobre turfe, tênis ou informática – sem falar, naturalmente, nos magníficos artigos sobre conjuntos musicais de garagem. O problema do material econômico não é a especialização, mas a deformidade. A linguagem é feia e repleta de vícios. É um produto da combinação da preguiça, principalmente dos chefes, com a precária formação dos jovens profissionais.

O dólar subia ou caía, valorizava-se ou desvalorizava-se, quando se escrevia em português, Hoje em dia o dólar opera em baixa ou em alta, assim como o índice Bovespa. Ora, dólar não opera. O mercado opera, vá lá, mas não a moeda, nem o índice. Naquela era remota, o Produto Interno Bruto aumentava ou diminuía, crescia ou encolhia, mas não registrava crescimento nem redução. PIB não registra. A contabilidade nacional pode registrar a variação das chamadas grandezas macroeconômicas. As grandezas simplesmente variam ou não variam.

Bobagens como ‘registra’ e ‘opera’ têm sido freqüentemente acompanhadas, há alguns anos, de agressões à gramática e à sintaxe. Verbos transitivos tornam-se repentinamente intransitivos. ‘O dólar valorizou xis por cento’ passou a substituir ‘o dólar valorizou-se’. Outra jóia lingüística é a tradução literal de ‘appreciation’ e ‘to appreciate’. Em português, apreciação não é sinônimo de valorização. ‘O real está muito apreciado’ não corresponde a ‘o real está muito valorizado’.

Apego à rotina

A imprensa ainda não publicou maravilhas como ‘a conferência foi atendida por duzentas pessoas’ ou ‘fulano de tal endereçou o problema’. Mas chegará até aí, em pouco tempo, se não mudar de rumo. Frases com transposições literais de ‘to attend’ e ‘to address’ têm sido usadas por figuras do meio financeiro e já foram ouvidas numa entrevista do Roda Viva.

Mas o hábito de falar e de escrever inglês em português é cada vez mais popular. Apresentadores de programas de rádio recomendam aos ouvintes ‘dividir’ informações sobre o trânsito. Noutros tempos, ouvintes eram estimulados a passar, transmitir ou contar as novidades sobre congestionamentos, acidentes etc. Mas por que usar a velha língua portuguesa, quando o verbo ‘to share’ é tão bonito?

A última novidade do portunglês é a expressão ‘mais cedo’. Dizia-se ou escrevia-se na antigüidade: ‘O presidente da República discutiu a nova MP com o ministro da Fazenda durante o almoço. Antes (ou antes disso) havia recebido o embaixador da Bulgária’. Na modernidade a linguagem é outra: ‘O presidente da República (…). Mais cedo, recebeu o embaixador da Bulgária’. Pode-se apenas conjecturar sobre o início dessa onda. Alguém deve ter traduzido ‘earlier’ como ‘mais cedo’, em vez de usar o tradicional ‘ante disso’. A bobagem pegou. Boas idéias não pegam ou só pegam depois de décadas ou séculos.

Mas nada se compara ao noticiário online, distribuído em pequenas notas pelas agências. Pérolas como ‘dólar de lado à espera do payroll‘ são rotineiras. ‘Payroll’, naturalmente, é a informação, distribuída pelo governo americano, com regularidade, sobre a variação do emprego urbano (com mais precisão: não-rural).

O ‘dólar de lado’ é uma das formas de animação do noticiário econômico. Algumas são expressivas e justificáveis, outras, nem tanto. O abuso do antropomorfismo pode ser irritante. ‘A soja respondeu por xis por cento das exportações’ e ‘as vendas de geladeiras responderam por xis por cento da receita bruta da empresa’ são fórmulas comuns. A noção de responsabilidade, em casos como esses, não tem sentido, mesmo figuradamente.

Esse tipo de linguagem é apenas manifestação de preguiça e de apego à rotina. É escandaloso, mas profissionais de comunicação dão pouca importância ao sentido e ao valor das palavras. Daí o abuso, por exemplo, de expressões como ‘euforia’ para descrever reações positivas no mercado financeiro.

Valor pedagógico

Linguagem figurada não é necessariamente ruim. A maior parte da escrita e da fala depende do uso de imagens. A expressão ‘linguagem figurada’ é uma figura. O uso de estrangeirismos também não é pecado. Mas é tolice usar palavras como ‘case’ e ‘delivery’ para substituir termos correntes como ‘caso’ e ‘entrega’.

Há mais de trinta anos, o estudo de caso era rotineiro na Escola de Administração de Empresas da FGV, em São Paulo. Nenhum professor usava a expressão ‘case studies’, embora a técnica fosse originária de universidades americanas. Muitos docentes da EAESP-FGV faziam mestrado ou doutorado nessas universidades. Mas voltavam falando português e isso era considerado perfeitamente normal. Os alunos tinham de ler inglês, espanhol e francês, porque a bibliografia em língua portuguesa era escassa e, em grande parte, desatualizada. No entanto, não pareciam julgar necessário o abuso de estrangeirismos.

Fazem falta aqueles chefes de reportagem desbocados de antigamente. Algumas de suas lições eram inesquecíveis. Que ‘foca’ voltaria a usar a expressão ‘via de regra’, depois do ouvir do chefe a explicação de seu significado em termos anatômicos? Antes disso, naturalmente, o dedicado instrutor havia rasgado e jogado no lixo a matéria. O teatrinho tinha valor pedagógico. O padre Anchieta sabia disso no começo da colonização do Brasil. Só não falava palavrões, mas ninguém é perfeito.