Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem é mesmo quem?

Que critérios ter em mente quando decidimos fazer uma entrevista? Esta pergunta me fiz após ler a entrevista de Tom Jefferson à revista Época (n. 590, de 7/9/2009). Do início ao fim a entrevista deixa imensos buracos, vazios oceânicos. A começar pelo título que, aspeado, destacava ‘Não havia razão para a OMS decretar pandemia’. Ora, vai fazer um ano que a gripe H1N1, mais conhecida como gripe suína, foi elevada à posição de catástrofe número 1 afetando a saúde pública planetária.

O assunto vem rendendo amplo espaço noticioso em qualquer dos meios de comunicação. Nas editorias de turismo ficamos sabendo do baque nas contas do México, pois foi lá que os primeiros focos foram detectados. Nas editorias de economia encontramos os valores financeiros empenhados por dezenas de governos para esclarecer suas populações sobre como se precaver contra a nova influenza, e dando conta da compra maciça do Tamiflu e seus congêneres para debelar a gripe nos já infectados.

Imagens impensadas há pouco tempo fizeram a festa dos telejornais: missas católicas sem audiência com o sacerdote oficiando ante a câmera de TV ou ante a prosaica webcam, igrejas fechadas ao longo dos domingos, cumprimentos rotineiros isentos de contato físico, gente nas ruas portando máscaras hospitalares que logo passaram a ser o mais novo adereço da moda.

Loas ao subjetivismo

Voltemos à entrevista. Quem é o personagem? Diz a matéria que Tom Jefferson é ‘coordenador do Departamento de vacinas da Cochrane’. E fica por aí mesmo. Que instituição é a Cochrane? Informa a revista: ‘Colaboração Cochrane… respeitada entidade voltada para a saúde pública’. E assim o que não é dito pesa mais do que o dito. A escassez de informação sobre o personagem e a empresa em que trabalha é emblemática. Se tratássemos do show bizz e o entrevistado fosse Bob Dylan ou Chico Buarque, ao menos para nós brasileiros, entenderíamos ser desnecessário torrar espaço com informação pra lá de batida, conhecida. Se a instituição fosse algo como a Greenpeace ou Anistia Internacional, também não careceria desperdiçar caracteres à guisa de explicações.

Acontece que nem Tom Jefferson nem a Cochrane freqüentam esse Olimpo dos que alcançaram o beneplácito imediato e recorrente do conhecimento público. Vai que a ignorância é tão somente minha, afinal, cada vez mais me dou conta que meu conhecimento não é mais alto que a altura de uma gilete deitada. Pois então, relevemos. Também soa vaga, vaguíssima a informação de que se trata de uma ‘respeitada entidade’. Conceito-ônibus: cabem 1.844 instituições. O subjetivismo inteiramente a cargo do jornalista e do editor transborda aos leitores.

Vírus no ar

A entrevista consta de apenas oito perguntas e reunindo perguntas e respostas não ultrapassa 384 palavras. Entrevista de média a curta para o padrão editorial de uma das principais revistas de informação semanal do país. Muito bem. Se já não conhecia o entrevistado nem sua instituição, após a entrevista continuo na mesma. Mas sei que o assunto merecia maior apuro jornalístico, mais investigação, apuração etc., etc. Isto porque o entrevistado faz afirmações e denúncias sobre a gripe suína que destoam inteiramente do noticiário a que minha mente, olhos e ouvidos não estão acostumados. Jefferson diz que a (aí sim) respeitada Organização Mundial de Saúde (OMS), do sistema Nações Unidas, a poderosa xerife da saúde pública mundial, agiu de forma intempestiva – ou terá sido leviana? – ao decretar pandemia. A despeito de todas as campanhas sobre a gripe, ele acha que o vírus é superestimado e chega a ser hilário não se tratasse de especialista ‘que trabalha há 15 anos na influente Colaboração Cochrane’ ao dizer que a melhor prevenção é lavar as mãos. Ora, ora! Foi exatamente a imagem do lavar as mãos que a revista escolheu para subtítulo da entrevista…

As oito perguntas, embora claras, recebem respostas inconsistentes algumas vezes, evasivas quase todas. E fica por isso mesmo, já que o repórter não se dá ao trabalho de voltar a inquiri-lo buscando contemplar um pouco mais a sede de conhecimento dos leitores. A primeira e a segunda perguntas são ilustrativas. Transcrevo-as:

ÉPOCA – O senhor diz que havia uma indústria à espera da pandemia. Por quê?

Tom Jefferson – Quatro elementos foram importantes na decisão de declarar a pandemia de gripe suína: os governos, a indústria farmacêutica, os especialistas e a mídia. Todos têm muito a ganhar.

ÉPOCA – O que os governos têm a ganhar?

Jefferson – Com a história da gripe aviária, eles criaram estoques de remédios e vacinas cuja validade está expirando.

Já na primeira pergunta sabemos como vai se (des)encaminhar a entrevista. A resposta afirma que ‘quatro elementos foram importantes na decisão de declarar a pandemia de gripe suína’. E dá nomes aos elementos: governos, indústria farmacêutica, especialistas (da saúde) e mídia. Mais abrangente impossível. O vírus parece trazer consigo algo mais. Temos então uma idéia de conspiração no ar. Convenhamos, a resposta embora lacônica não perde seu teor explosivo.

Água e sabão

A segunda pergunta mostra um repórter atento: ‘O que os governos têm a ganhar?’ E teria sido imensamente melhor se fosse formulada assim ‘O que os quatro (elementos) têm a ganhar?’ Vamos ao que interessa, à pergunta feita e não aquela que poderia ter sido feita. Jefferson responde com exatas 17 palavras: ‘Com a história da gripe aviária, eles criaram estoques de remédios e vacinas cuja validade está expirando’. Espantosa a capacidade do especialista britânico de lançar informações em tom denuncista; e na ausência de quem o chame a se explicar melhor continue no mesmo embalo, só que ininteligível. Confira: ‘Com a história da gripe aviária, eles criaram estoques de remédios e vacinas cuja validade está expirando.’ Qual a ligação entre uma coisa e outra? Como os governos ganham com a gripe ao decidirem criar estoques de remédios? Como eles ganham ao criar estoques de vacinas em fase final de validade?

Nesse caso quem teria a ganhar, em minha tacanha opinião, seria a indústria farmacêutica e não os governos. Teria sido erro de edição da entrevista ou temos um entrevistado que não diz coisa com coisa? Ou, então, o que é pior, seriam os dois motivos?

Foi nesse ponto que voltei ao início do texto. Queria checar quem era mesmo o entrevistado, a que instituição ou empresa pertencia, quem era o entrevistador. Enfim, comecei a duvidar que estava lendo o que estava lendo. Primeiro porque só decidi ler o ‘material’ devido à chamada de que a OMS teria errado ao decretar uma pandemia a gripe suína. Depois, observei que era uma opinião francamente contrária ao rio de notícias sobre o tema. E, obviamente, queria saber quem era Tom Jefferson e quem era a Cochrane.

Terminei frustrado. Pouco conheci o personagem e menos ainda sua instituição. Quanto à gripe e à revista, decidi lavar as mãos.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo