Na grande imprensa brasileira, o dia seguinte da eleição nos Estados Unidos foi da escrachada vitória da Folha de S.Paulo sobre a concorrência. E esta, por sua vez, foi a vitória de uma estratégia editorial para tempos de escassez.
Atado pela crise que não faz muito produziu uma hecatombe na sua redação, o jornal perdeu a capacidade de cobrir todas ou quase todas as coisas de que o leitor tem o direito de ser informado, em troca dos seus reais.
A mero olho nu dá para ver que o Estado de S.Paulo e o Globo oferecem um volume bruto de noticiário consistentemente maior e mais abrangente do que a Folha, qualquer que seja o balanço que se queira fazer da qualidade do produto jornalístico oferecido pelos três.
Diante das suas limitações, o jornal dos Frias teria decidido este ano concentrar o poder de fogo de que ainda dispõe em três grandes acontecimentos: os Jogos Olímpicos de Atenas, as eleições municipais no Brasil e a eleição nacional nos Estados Unidos.
No primeiro caso, perdeu o ouro para o Estadão. No segundo, dividiu os louros com o Globo. No terceiro – e está se falando exclusivamente da edição que mais interessa, a do day after – venceu o concorrente carioca por pontos e pôs a nocaute o adversário paulista.
‘Indisfarçável simpatia’
Poucos resultados da batalha inglória que é tirar um jornal a cada 24 horas hão de machucar tanto o jornal dos Mesquitas como o de ser batido – e ainda por cima inapelavelmente, como diziam os cronistas esportivos – na cobertura do exterior.
Nesse setor, nenhum outro jornal brasileiro tem um retrospecto comparável ao do Estadão – desde a Primeira Guerra Mundial. O jornal cobriu a Guerra Fria como se dela estivesse participando (decerto os seus donos achavam que estavam participando).
Mas o fato de o jornal ter se instalado desde a primeiríssima hora na espaçosa trincheira dos Estados Unidos, apoiando, por exemplo, a invasão do Vietnam e todos os golpes praticados em nome da democracia, não impede que se reconheça que os brasileiros que não lessem regularmente periódicos estrangeiros só nele encontrariam, anos a fio, amplo, destacado e bem-editado noticiário internacional.
Portanto, há de ter sido humilhante para a ‘Casa’ e decepcionante para o leitor o modo como o Estado deu a vitória de Bush. O vexame se dá a ver já na manchete da primeira página, ‘Bush, reeleito com votação recorde: ‘A América falou’’.
Afora a praga dos dois pontos, começa que Kerry também obteve uma votação recorde para um candidato derrotado – o que no mínimo lança dúvida sobre a importância ‘manchetal’ da informação. Por fim, puxar para o título uma batida figura de retórica é de uma falta de imaginação de dar dó.
Já a concorrência foi direto à jugular do ocorrido – por que o presidente triunfou. ‘Onda conservadora dá vitória completa a Bush’, respondeu a Folha. ‘Voto pelo isolamento e onda conservadora reelegem Bush’, preferiu o Globo.
Talvez a expressão ‘pelo isolamento’ não tenha sido a mais adequada; valeu, de qualquer maneira, a intenção de explicar ao leitor um resultado com o qual não era de esperar que contasse, de tanto que foi instado a torcer contra Bush. Como escreveu o ombudsman da Folha Marcelo Beraba, ‘foi indisfarçável a simpatia dos diários brasileiros pela candidatura democrata’.
Até o Valor, contido como convém a um jornal de negócios, produziu uma manchete mais informativa do que a do Estadão: ‘Bush é reeleito com mais poderes’.
Na íntegra
Pode-se continuar com essas comparações, passo a passo. Das chamadas nas primeiras páginas aos textos internos, o padrão se repete. Um único exemplo para não cansar – o dos lides das matérias principais em cada diário.
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No Estado: ‘O presidente americano, George W. Bush, ganhou ontem uma das mais acirradas eleições à Casa Branca, com a maior votação já recebida por um líder americano – cerca de 59 milhões de votos – e prometeu imediatamente usar o forte mandato que recebeu das urnas ‘para lutar (sic) essa guerra contra o terror com todos os recursos do nosso poder nacional’.’**
Na Folha: ‘Amparado por uma nova onde conservadora, o presidente republicano dos Estados Unidos, George W. Bush, 58, obteve ontem uma vitória completa sobre o seu adversário democrata, o senador John Kerry, 60, na eleição norte-americana de 2004.’**
No Globo: ‘Ao realizar uma primeira e rápida avaliação no início da tarde de ontem, no Salão Oval da Casa Branca (…), Karl Rove, o principal estrategista da campanha de reeleição do presidente George W. Bush, virou-se para este e o grupo de assessores reunidos ali e comemorou: – Viram só? Nem guerra no Iraque, nem economia. Ganhamos graças à nossa política de segurança nacional e à agenda social de valores tradicionais, a defesa da família e da fé.’**
No Valor: ‘O presidente George Bush, que teve a sua reeleição confirmada ontem, terá um segundo mandato com potencial para deixar marcas de conservadorismo na sociedade americana por décadas.’Ou seja, só o Estadão não pôs em evidência o dado essencial da eleição que o mundo inteiro acompanhou mais de perto do que nenhuma outra antes – o ‘triunfo da América profunda’, como o mesmo jornal intitularia o seu editorial a respeito no dia seguinte.
Na quantidade, outra vitória da Folha entre os três grandes. Foram 34 textos, entre reportagens, comentários e entrevistas, ocupando um caderno de 14 páginas. No Globo, 24 textos em um caderno de 10 páginas. No Estado, 19 textos e 7 páginas normais do primeiro caderno.
O Estado, que puxou o discurso de Bush para a manchete da primeira e a da seção, deixou de publicá-lo na íntegra. A Folha, sim. O Globo fez, salvo engano, uma coisa inédita no país – analisou numa matéria específica, sob o título ‘Brasil: mídia é cautelosa mas pesquisa confunde’, o noticiário dos jornais brasileiros da véspera. O Globo também foi o único a gastar uma página com bons mapas, gráficos e tabelas sobre o pleito americano.
Momento crítico
Atacando em massa e em todas as frentes, a Folha publicou textos de 15 jornalistas brasileiros (Fernando Canzian, Luciana Coelho, Clóvis Rossi, Fabiano Maisonnave, João Batista Natali, Maria Brant, Rafael Cariello, Márcio Senne de Moraes, Nelson Ascher, Marcelo Billi, Érica Fraga, Fernando Eichenberg, Eliane Cantanhêde, Carlos Eduardo Lins da Silva e Nelson Sá), além dos articulistas convidados Luis Bitencourt e Manuela Carneiro da Cunha. E transcreveu três artigos estrangeiros – não se sabe se por acaso ou de propósito, todos ingleses.
No Estado, com exceção de três textos de side story e de um artigo de análise da jornalista Dorrit Harazim, compartilhada com o Globo, o único brasileiro a assinar foi o correspondente em Washington Paulo Sotero. As matérias transcritas da imprensa estrangeira foram sete. (No dia seguinte, correndo atrás do prejuízo, o jornal deu mais oito).
Ficou patente – e não foi a primeira vez – que, diante de um acontecimento de grosso calibre, a Folha tem mais a quem recorrer entre os seus do que o Estado para levar ao leitor mercadoria exclusiva e de padrão médio para cima.
Além disso, as comparações com a concorrência sugerem que a recente reforma gráfica e editorial que, entre melhoras e pioras, tornou o jornal mais fútil e ‘publicitário’, como apontou neste Observatório Alberto Dines, o deixou também menos equipado em matéria de acuidade jornalística diante de um megaevento no setor de hard news como a eleição na América.
Se há hoje um jornal brasileiro que deve ser examinado com lente de aumento é o Estadão, pela impressão que transmite de estar passando por um momento crítico – e perigoso. Os seus erros na abordagem da vitória de Bush, contrastando com o foco certo e o belo desempenho da Folha (e, em não muito menor escala, do Globo), deveriam ser suficientes para induzir a redação a comprar a bússola mais confiável que houver no mercado.
[Texto fechado às 17h30 de 7 de novembro]