Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quem pagará pelo jornalismo? Qual jornalismo?

Há dias escrevi no Correio da Manhã sobre a irracionalidade de uma indústria que, perante tremendas dificuldades de vária ordem, acredita que se salvará através de um aparelho de leitura novo, de adesão ainda desconhecida e sobre o qual não tem a mais pequena espécie de controlo (ler no jornal ou aqui no blog).

Falava do iPad e da indústria dos media, no sentido lato – embora quem, na realidade, ‘vê’ a salvação no iPad seja a subindústria do jornalismo.

Na sexta-feira (9/4) o ex-director e agora colunista do Público, José Manuel Fernandes, tem um recomendável artigo no jornal em que aborda este assunto (‘Do iPad na Quinta Avenida ao `projectista´ da Guarda‘). Embora cauteloso – reflexo das muitas leituras e de algumas conversas seguidas pelo Twitter –, faz eco das aspirações do jornalismo face ao iPad.

A leitura do seu artigo fez-me enunciar aqui algumas considerações, mais em jeito de prolongamento de uma reflexão que rareia em Portugal do que de resposta, ainda que algumas possam como tal ser entendidas.

iPad aprofunda o papão dos jornalistas: o hipertexto

Começo pela crença de que o iPad mudará a orientação de leitura das pessoas. Grosso modo, dizem os defensores da teoria, com o iPad os ‘conteúdos’ passarão a poder ser espartilhados de novo num canal ao qual se pode apor um torniquete e uma bilheteira. Nem sei se é bem uma teoria, ou apenas um forte desejo tornado pensamento positivo.

Um pouco de história. Breve. Desde o aparecimento da World Wide Web os jornalistas têm convivido mal com a teia. A teia, tornada possível pelo hipertexto, é o papão dos jornalistas. Um temor irracional que fazia, nos primeiros tempos (e faz hoje ainda em milhares de redacções), com que nem por decreto-lei um jornalista colocasse um link num artigo. Nem para uma fonte, mesmo que se tratasse de uma fonte oficial. JAMAIS pensar em hiperligar uma página da concorrência. E nunca, nunca, nunca, NUNCA! assumir com um link a autoria externa de uma foto, de um video, de uma ideia.

A justificação: um link manda as pessoas para fora da nossa página.

(Na realidade os jornalistas sempre tiveram o dedo fácil para se apropriarem do esforço alheio, publicando informações como de sua autoria sempre que podiam omitir o nome da fonte, em especial se a fonte era um jornal rival; uma indústria floresceu à sombra dessa ‘vaidade autoral’: a das agências de comunicação que se especializaram em distribuir a mesma mensagem por todas as redacções, parecendo que toda tinham ‘a’ cacha.)

Veio a blogosfera e, partilhando a mesma tecnologia e sentido de oportunidade, os primeiros órgãos informativos alternativos. Uma e outros usam o hipertexto com naturalidade, cruzando links sempre que se justifica e até mesmo quando, não o justificando a leitura, a cortesia e a troca de reconhecimento são encaradas como um valor que se passa num link.

Vieram os grandes negócios em cima da pesquisa. Para o que aqui conta, o Google fez negócio precisamente com o papão que assusta os jornalistas: enviar pessoas para fora da sua página.

Vieram os grandes negócios explorando os próprios links: a publicidade contextual fez florescer milhares de pequenos, médios e grandes serviços de apontadores, alguns dos quais se tornaram agregadores de links crescendo ao ponto de poder inverter a relação de forças, subalternizando os produtores de conteúdo. O caso do Sapo, em Portugal, devia ser estudado pelos jornalistas e seus empregadores.

(Não deixa de ser ridículo ver jornalistas cujos órgãos de informação produzem entre 10% e 50% do conteúdo que vendem apontarem o dedo ao negócio dos portais de links…)

Vieram as redes sociais, a web 2.0 – ou seja, a incorporação do hipertexto na própria comunicação individual, que permitiu substituir algumas funções do jornalismo, como indicar os melhores restaurantes, automóveis em segunda mão ou serviços de telecomunicações com mais defeitos.

E a todas as modificações permitidas, impulsionadas ou possibilitadas pelo hipertexto a indústria do jornalismo olhou desconfiadamente, atrasando a respectiva incorporação no seu produto.

Neste quadro, não é de admirar que os jornalistas não consigam ver no iPad o que ele realmente é: mais um filho do hipertexto, um especialmente importante na medida em que liberta o hipertexto da condicionante posicional. Não mais precisarei de ‘ir ao computador’ para ver, em termos práticos, o que pude antever na breve consulta via smartphone: com o iPad sigo, em excelentes condições, os links que me chegam para as coisas que me interessam.

No iPad reside uma versão aprimorada do Safari. Recordo: o Safari é um web browser. Agora expliquem-me porque é que leitores educados na web, no hipertexto, no acesso instantâneo, tendo o seu mundo em rede simplificado e melhorado num aparelho libertador, irão ao invés optar por se fecharem em aplicações únicas, sem contacto umas com as outras?

Nem sequer coloco a segunda questão óbvia por esta altura: porque é que ainda por cima pagarão para o fazer?

(É claro que algumas pessoas pagam. Pessoas como a minha irmã, que paga conscienciosamente praticamente todo o software livre que usa. Pessoas como a minha mulher, que paga semanalmente alguns jornais por razões de consciência pois que quase só os lê online. Mas não serão as excepções a salvar um negócio que viveu das regras, das massas. Ou o Pai Natal existe.)

Então, quem pagará pelo jornalismo?

José Manuel Fernandes coloca de novo a questão, alinhando o iPad para uma possível resposta: quem pagará pelo jornalismo?

Eis algumas ideias afluentes.

O jornalismo como negócio nunca subsistiu autonomamente. Ao longo da história os ‘conteúdos’ jornalísticos serviram para vender ideias, políticas ou comerciais. Foram, e ainda são, veículos avalizadores de outras informações que, não tendo em geral capacidade para serem elas próprias ‘notícia’, passam nas mesmas páginas como anúncios, ou publicidade. É esta que gera o lucro das empresas que através dos tempos pagaram o jornalismo.

Esta é a solução dominante; há mais algumas, como raros jornais e revistas que ao longo de períodos da sua história subsistiram apenas das vendas – isto é: do interesse que os seus artigos geravam no público, dando-se ao luxo de relegar os anúncios para segundo plano. Só conheci um exemplo em Portugal: o tri-semanário desportivo ‘A Bola’, que durante décadas pode desprezar a publicidade como fonte de lucro.

Portanto, o jornalismo tem sido pago maioritariamente por quem dele precisa: os anunciantes, num distante primeiro lugar, entidades e organizações com diversas finalidades que subsidiam o produto do jornalismo seja por vaidade pessoal ou prestígio (mecenato), controlo de comunicação de massas (grupos económicos) ou interesses mais diretos que não desejo abordar aqui.

Atenção: não estou a dizer que o jornalismo não tem um público que o quer, que dele precisa, e que o pode financiar. Na realidade penso que tem.

Onde pretendo chegar é aqui: as necessidades de jornalismo existem, mas não são capazes de satisfazer a indústria do jornalismo que conhecemos e que se desenvolveu com base em premissas que só indirectamente têm a ver com a informação, a liberdade de acesso à informação, a liberdade de expressão e a profissionalização desse exercício.

Uso outro exemplo do artigo de José Manuel Fernandes. O número de jornalistas acreditados junto da União Europeia em Bruxelas diminuiu de mais de 1.300 para 752, de 2005 para cá (cita The Economist). Alguns poderão ver aqui um sinal dos cortes a que os donos dos jornais têm sujeitado as publicações, no intuito de manter os lucros ou suavizar a sua queda. Mas outros poderão contrapor que se trata de uma auto-correcção: 1.300 jornalistas acreditados não seriam um luxo? Em aritmética simples, 1.300 jornalistas representam 6,4 jornalistas por cada país do mundo (lista na Wikipedia).

Há um factor que os jornalistas (e quem, não o sendo, se interessa pela sua existência) também gostam de passar em claro, quando não ignorar: as tecnologias de informação e distribuição reticular não beneficiaram apenas os indivíduos com tempo livre para blogarem, mas também os organismos e instituições tradicionais emissores de informações úteis ou relevantes. Instituições como… a União Europeia, ou a Presidência da República portuguesa, têm agora um contacto direto com audiências de todos os tipos – incluindo algumas audiências capazes de reprocessar a informação de forma inteligente ou mesmo crítica.

Este papel de publicitação da informação, em forma directa ou acrescentando-lhe valor pelo processamento, avaliação, contraposição e outras formas de adicionar valor, era um exclusivo do jornalismo. Era. Deixou de ser.

Quer isto dizer que os jornalistas deixaram de ser os avaliadores da informação das fontes oficiais?

Não! Que ideia. Quer apenas dizer que deixaram de ter o exclusivo. Com eles concorrem agora uma plêiade de indivíduos e organizações interessadas, uns com mais empenho e capacidade técnica, até, que os jornalistas, outros meros observadores com gosto pela opinião. Mas todos eles capazes não apenas de executar, em conjunto e de forma satisfatória, o processo de fiscalizar e aferir a prestação de contas (da coisa pública como da coisa privada com interesse público), mas também a actividade de tornar públicos os resultados desse processo – e retransmitir a informação processada, por eles ou por terceiros.

Além da publicação da informação oficial, o jornalista perdeu portanto duas importantes fontes do interesse na sua actividade: a filtragem e a publicação, no sentido de difusão ou emissão, de resultados.

Talvez fosse então pertinente passar a adicionar à pergunta acima uma segunda pergunta, como fiz no título deste artigo:

Qual jornalismo?

O jornalismo de agregação e retransmissão de informações? A informática e a rede tiraram-lhe a exclusividade dos dois processos. Já não merece ser pago e não o será, nem que a Apple tenha o maior sucesso com o iPad e este corresponda aos delírios.

O jornalismo de filtragem, que apontava os melhores filmes, livros ou automóveis? O hipertexto e as redes tornaram-no desnecessário. Subsistirão alguns olhares, alguns críticos experimentados, e uma certa nostalgia da crítica. Mas a selecção já é maioritariamente feita com recurso à rede.

O jornalismo de inteligência e experiência, que vai a um congresso partidário, a uma final desportiva, a um evento público e interpreta e explica? A concorrência dos bloggers é imensa e intensa.

Volto a um dos exemplos favoritos de José Manuel Fernandes: o de José António Cerejo (que conheço há 30 anos, com quem trabalhei e que admiro) e as suas investigações sobre as actividades do Primeiro Ministro. Na verdade, quem paga este tipo de jornalismo não é o leitor. Cerejo e a sua investigação são possível graças ao mecenato.

Com elevados custos e audiências ainda mais pequenas, a maioria do jornalismo de investigação só foi possível graças a: mecenato – genérico (Belmiro com o ’Público’) ou dirigido (reportagens sobre ambiente patrocinadas por ONG) – ou a sindicatos de publicações, sob a forma de agências, que repartem os custos.

Sem pretender ser exaustivo – os académicos estão aí para isso – detalho ainda outra forma de pagar o ‘jornalismo de investigação’: a diluição dos seus custos no produto global. É um preço que só publicações que competem pelo prestígio aceitam pagar: destinar parte dos lucros fáceis com produtos de consumo de massas garantido e fraca despesa (p.ex: cobertura de jogos de futebol) para sustentar produtos não rentáveis em dinheiro mas que geram capital de prestígio e admiração.

Este esquema de financiamento operacional tem sido naturalmente sacrificado pelos cortes com as despesas em geral. É, no entanto, importante relembrar como são realmente as coisas no momento de perguntar à sociedade quem vai pagar o jornalismo.

Chegado aqui, o leitor achará que pertenço aos pessimistas e catastrofistas do jornalismo. Nada mais errado. Pelo contrário, intuo que num mundo em que a informação tende a ser cada vez mais abundante, as habilidades intrínsecas desta profissão serão valorizadas. Tenho até algumas ideias sobre os ‘comos’. Mas por ora prefiro contribuir para poupar equívocos.

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Colunista do jornal português Correio da Manhã e mantém os blogs Ondas na Rede e Certamente; é consultor de new media, jornalista e escreve livros e artigos (e também algum código) sobre a net e na net desde 1989; Twitter em @PauloQuerido