Eis que mais uma página foi virada no conturbado livro que vai registrando os primeiros anos do século 21. A julgar pelo atordoante alvoroço criado em torno de uma simples eleição, todos os habitantes do planeta estariam na iminência de uma catástrofe capaz de erradicar a civilização. Claro, isto não aconteceu. Por outro lado, há de se reconhecer que o fato existiu, a considerar-se o comportamento assumido pela mídia.
No mais alto estilo promocional, semelhante ao que fazem em torno de mais uma ‘luta do século’ (a exemplo de como costumam chamar as decisões por títulos mundiais de boxe), a eleição, felizmente encerrada nos EUA, foi verdadeiramente a prova cabal da eficiência simulatória do sistema midiático.
O modelito jornalístico brasileiro, por sua vez, não fez por menos. Tratou a cobertura da campanha e da votação como se o destino do Brasil estivesse na mão de Kerry ou de Bush. O Globo e, ainda mais, a Folha de S.Paulo entraram numa disputa esquizofrênica, na ânsia de um demonstrar ao outro quanto poderia ser superior. A Folha, salvo erro de avaliação, ganhou com as edições especiais de seus novelísticos cadernos, sob o título cinematográfico ‘O Império vota’. Na média, eram oito páginas por edição, entre textos, gráficos e fotos. A TV Globo também deu sua contribuição, reduzindo o Jornal Nacional ao ‘grande espetáculo da Terra’.
Sinceramente, tudo foi uma imensa gaiatice da qual nada restará. Tanto papel e tanta falação sobre literalmente nada. Para não parecer intransigente, reconheçamos o quanto a imprensa brasileira tentou ser didática no esforço de ‘ensinar’ ao pobre ser brasileiro como se vota nos EUA. Foram aulas ‘memoráveis’ para coisa nenhuma. Enfim, tanto investimento e gastos para a realidade do mundo continuar seguindo seu caminho, independentemente de quem o escolhido fosse.
Democracia e manipulação
O tom assumidamente irônico dos parágrafos anteriores tem o intuito de sinalizar o que pode fazer e o que deixa de fazer certo tipo de jornalismo cujo propósito, em nome da ‘objetivadade’, significa a abolição do olhar crítico. É dessa fórmula, originada de um ‘distúrbio’ de comportamento, conhecido pela sigla SIC (síndrome da informação correta) que a atividade jornalística acrítica se vai degradando.
Houve, nas eleições americanas, sucessão de ocorrências em dimensão suficiente para caracterizar-se um processo de ‘fraude ascética’. Entenda-se na expressão usada uma seqüência de atos cuja prática é delituosa sem, no entanto, detectarem-se evidências. Dois desses fatos, pelo menos, foram conhecidos por todos: 1) o vídeo de Osama bin Laden; 2) a cédula de votação.
Será que, jornalisticamente (no antigo sentido do nobre ofício) não caberia explorar a ambigüidade dos atos do ‘diretor-presidente’ da maior multinacional do terrorismo? Vamos tentar tornar isso mais claro. Para começar, reconheçamos que bin Laden deixa qualquer marqueteiro profissional em regime de orfandade. A astúcia do terrorista é pródiga. É óbvio que sua reaparição quatro dias antes da eleição só poderia beneficiar a candidatura de George W. Bush. A razão é simples, como presente se faz no próprio depoimento que circulou pelo mundo.
Em certa passagem da declaração de bin Laden consta a seguinte sentença: ‘A segurança de vocês não está nas mãos de Kerry ou de Bush ou da al-Qaeda. A segurança está em suas mãos, e qualquer Estado que não nos ameace estará fora de perigo’.
Ora, diante desse teor como se comportou o eleitor indeciso? A frase inicial induz a um sentido de efeito neutralizador dentre as possíveis diferenças dos candidatos. Se a finalidade do líder da al-Qaeda era destruir o ‘inimigo’ Bush, por que, na nota emitida, o terrorista perdeu a oportunidade rara de fazê-lo, bastando para tanto que diretamente se dirigisse ao eleitor americano nesses termos: ‘Se vocês reelegerem Bush, sofrerão implacáveis tormentos’? É simples: o mal precisa realimentar o mal para não perder o álibi. Assim, bin Laden tanto necessita da permanência de Bush quanto este não pode prescindir da existência daquele. Nesse quadro, estão asseguradas as práticas de ambos, a pretexto de defenderem posições opostas.
Opção pelo trivial
Não estranhemos muito a possível conexão Bush-Laden, tendo cada qual atrás de si corporações que envolvem centenas de milhões de dólares. Vez por outra é salutar a recorrência à História. Nela encontramos o pacto (depois desfeito) entre Hitler e Stalin. Desse modo, fabricam-se simulações. Por outro lado, como comprovar que a massa de indecisos se desviou para o voto conservador com base no efeito produzido pelo marqueteiro do terrorismo internacional?
Em síntese, Bush já deve dois grandes favores ao líder da al-Qaeda: a) o 11 de Setebmro transformou a figura até então inexpressiva do presidente que chegara ao cargo por favores da Suprema Corte em imagem mundial; b) a inestimável ajuda para mais um mandato.
No tocante à confecção da cédula de votação, como a mídia americana não fez pressão quanto ao processo eleitoral que incluía, além do voto para cargos políticos, questionário plebiscitário cujos temas tinham em comum o fato de acentuarem decisões de ordem moral, à imagem e semelhança do ideário moral e religioso do presidente-candidato? Se isto não é indução, então o que será?
Agregue-se a essas estranhas combinações o próprio processo de cadastramento eleitoral, reunindo às vésperas do pleito verdadeiras legiões e usando explicitamente o ‘terrorismo psicológico’ a respeito do aborto, células-tronco, casamento gay, entre outras.
Como se vê, a prática jornalística tinha à disposição interessantes questões para explorar. Todavia, optaram, uma vez mais, pela cobertura trivial. O resultado é a manutenção de uma ordem que ainda renderá horrores e em nome da ‘democracia’. Aguardemos os desdobramentos.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro