Poderá parecer pretensioso para os tímidos limites de um artigo o que escolhi abordar como tema. Todavia, não deixa de ser instigante o risco de um enfrentamento. Na verdade, o julgamento fica mesmo é a cargo do leitor.
A rigor, tenho a intenção de alinhavar algumas angulações críticas quanto à situação difícil que mídia e governo, cada qual por desconfortos próprios, atravessam, diante da trama histórica em que se vê posta a realidade brasileira.
Limites e oscilações
É inegável que o atual quadro da realidade brasileira, em função dos desdobramentos a envolverem o presente governo, criou circunstâncias específicas para, principalmente, a esfera jornalística. Considerar que o cenário se assemelha ao de outras épocas pode representar o primeiro equívoco de percepção. Um aspecto diferenciador assegura a presença de uma paisagem incomum.
Enquanto estavam à frente do governo elites consolidadas pela tradição política brasileira, os escândalos em torno de práticas condenáveis não encontravam maiores dificuldades por parte das coberturas jornalísticas. Tratava-se de dar-lhes a divulgação devida sem maiores implicações. Todavia, a chegada ao centro do poder de uma força política com expressiva conotação de agremiação partidária de esquerda e popular, cuja prática, na condução do poder, se torna alvo de desmascaramentos sucessivos, gera um distúrbio quanto a como ajustar jornalisticamente o foco das matérias.
A questão que de início fica posta é a da suspeição. Em ambas as partes, governo e mídia, há margem para desconfiança. O governo passa a avaliar o comportamento da mídia sob o aspecto da estratégia de desestabilização. A mídia, por sua vez, no que denuncia, se torna, aos olhos de certos segmentos de (e)leitores, parte associada aos interesses das classes conservadoras. Ante esse temor, jornais e revistas andam aqui e ali às tontas, ora excedendo-se nos limites, ora em contidas oscilações a revelarem insegurança.
Para o primeiro caso, estão os exemplos de várias edições da revista Veja. Para o segundo, a ilustração mais recente é detectável na edição do milésimo programa do Roda Viva que foi ao ar em 7/11/2005. Nos dois casos, o público está fora de cena, transformando-se em refém de codificações traiçoeiras.
Ponto extremo
A atmosfera de dubiedades vivenciada pelo padrão midiático brasileiro, no tocante à política, reporta a aspecto mais profundo do caráter nacional. É sabido que, no Brasil, ninguém se apresenta claramente como representante da direita. Quem, por sua vez, até com histrionismo heróico, se declara de esquerda finda num enredo de perfil pelo menos nebuloso, no qual o discurso vai numa direção e a prática, em outra.
Em sendo esse o traço dominante, igualmente a mídia tende a reproduzi-lo. Ao fim, estamos todos mergulhados num jogo de embaralhamento completo cujo destino é a perigosa indiferenciação tanto jornalística quanto política – o que alimenta o enfraquecimento progressivo de ambas as instâncias e deixa, no horizonte da democracia, sombria visibilidade. Saber sair desse emaranhado é um desafio que cobra, ao mesmo tempo, serenidade e coragem.
É quase clichê afirmar-se que as crises colaboram para passos à frente. Nesse sentido, talvez, o passo desejado e necessário seja o de cada parte abdicar das máscaras, pagando o preço de sua verdade. Teremos, porém, atingido o estágio do amadurecimento, credencial indispensável, para cada setor cumprir seu papel? Não me parece que tais sinais sejam reconhecíveis, menos ainda em tempos nos quais sempre surge uma voz para entoar o canto de um abutre travestido de sereia para assinalar que, no mundo avançado, não há mais lugar para pensamentos dicotômicos no estilo binário ‘direita’ e ‘esquerda’. Outro leque de espertos, não menos travestidos de ingênuos promotores da voz crítica, a decantar que ‘a esquerda existe e está no poder’.
Como se vê, a realidade se vai construindo na mais absoluta rota oblíqua. A tensão entre os limites e as oscilações ainda não chegou a seu ponto extremo. O clímax será atingido ao longo da campanha política de 2006. Lá, na fervura das paixões e dos interesses, o caldeirão do mascaramento será vivido em plenitude. Estamos a caminho…
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)