Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Reflexões sobre a observação da imprensa

Muita gente deve achar que é fácil ser um observador da imprensa, ganhar a vida lendo jornal, assistindo televisão, navegando na internet e apontando os erros – que não são poucos – dos colegas. Só que não é bem assim que as coisas funcionam.

O trabalho é de fato muito interessante, mas difícil. Um bom observador não se atém aos errinhos que aparecem nas páginas dos jornais, revistas e sites jornalísticos ou às gafes dos apresentadores de telejornais. Ao contrário, a compreensão do processo de elaboração de um jornal, revista, site noticioso, programa de rádio ou televisão é essencial para perceber a diferença entre o erro técnico – jornalistas erram muito, sobretudo porque estão submetidos à pressão do fechamento – e algo muito mais grave: o erro conceitual, aquele que simplesmente destrói toda a cobertura jornalística.

Sim, porque há erros e erros. Alguns viram verdadeiras lendas, se transformam em causos que fazem rir os leitores e principalmente os próprios profissionais de imprensa. Já ficou célebre, por exemplo, nota publicada em um grande jornal no dia 7 de dezembro de 1994 e que esclarecia sobre a morte de Jesus Cristo: ‘Diferentemente do que foi publicado no texto `Artistas periféricos passam despercebidos´, à pág. 5-3 da edição de ontem da Ilustrada, Jesus não foi enforcado, mas crucificado, e a frase `No princípio era o Verbo´ está no Novo, não no Velho Testamento.’

Como pode alguém errar algo tão básico? Pois jornalismo é assim. É provável que o autor do texto que mereceu a correção saiba perfeitamente que Jesus fora crucificado e tenha sido traído pela pressão do fechamento, escrevendo inadvertidamente algo que com um pouco mais de tempo, uma única releitura ou revisão, teria sido obviamente corrigido antes ‘da página descer’, como se dizia no jargão da profissão no tempo em que as gráficas ficavam no mesmo prédio da redação, em geral no andar térreo.

Trabalhoso e complexo

Apontar erros insólitos é parte da observação da imprensa, merece o registro bem humorado, como faz com maestria o jornalista Carlos Brickmann neste Observatório, mas não é o foco central do trabalho – e nem o enorme Carlinhos se limita a esses registros, trazendo sempre uma reflexão inicial mais profunda sobre os temas da semana.

O foco central da boa observação da imprensa, portanto, não pode ser o erro circunstancial, cômico e muitas vezes até compreensível. O mais importante é entender o funcionamento do sistema midiático e apontar os seus movimentos mais importantes. Para tanto, é importante lembrar o conceito de imprensa do jornalista e filósofo italiano Antonio Gramsci: ‘Uma organização material voltada para manter, defender e desenvolver a `frente´ teórica ou ideológica do bloco hegemônico’. Segundo Gramsci, ‘enquanto aparelhos político-ideológicos elaboram, divulgam e unificam de concepções de mundo, jornais e revistas cumprem a função de organizar e difundir determinados tipos de cultura’ [Antonio Gramsci, apud Dênis de Moraes, ‘Imaginário social, hegemonia cultural e comunicação’, in A batalha da mídia. Rio de Janeiro, Pão e Rosas, 2009].

Gramsci morreu em 1937, mas a reflexão que fez sobre a imprensa permanece atual e merece ser levada em consideração por quem se atreve na observação da mídia. O filósofo entende que a imprensa ‘atua como aparelho privado de hegemonia, na medida em que procura intervir no plano político-cultural para organizar e difundir informações e idéias que concorrem para a formação do consenso em torno de determinadas concepções de mundo’ [Dênis de Moraes, ‘A comunicação na batalha das ideias’, artigo para o site Gramsci e o Brasil]. Este conceito é de fato fundamental para a observação da mídia.

Traduzindo a teoria, do ponto de vista prático é preciso estar muito atento ao entorno, às variáveis políticas e ideológicas que cercam a imprensa. Para se fazer uma boa crítica, portanto, é necessário estar sempre muito antenado no cenário político – nacional e mundial. E também no mundo das ideias, acompanhar ao menos os principais debates acadêmicos em curso. Pode parecer complicado, mas na verdade é mais trabalhoso do que complexo: um observador dedicado deve acompanhar atentamente as páginas de política e economia dos grandes jornais, mas precisa também ser leitor assíduo dos suplementos de ideias; no Brasil, precisa saber das últimas de Brasília, mas também do que vai pela planície, e o talk of the town muitas vezes está mais nas novelas da Globo do que nos telejornais.

Eterna prontidão

Impossível observar a imprensa sem levar em conta, para citar um episódio emblemático, uma minissérie global como Anos Rebeldes, que colaborou, em 1992, para criar um ambiente propício ao primeiro e único impeachment de um presidente da República no Brasil. É bom lembrar que a série em questão foi exibida na mesma emissora que deu suporte à eleição do ex-presidente impedido, o hoje senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL). Neste caso particular, este Observatório da Imprensa nem existia – surgiu em abril de 1996, na internet –, mas é um episódio que mereceu, em muitos momentos, reflexão posterior em situações análogas.

Impossível também observar a imprensa sem levar em conta alguns debates mais gerais e tão presentes no nosso tempo, como o do meio ambiente – acompanhado de perto aqui no Observatório por Luciano Martins Costa – ou as questões de gênero, especialidade de Lígia Martins de Almeida. Evidentemente, é impossível observar tudo o tempo todo – por isso mesmo este Observatório da Imprensa conta com uma equipe e tem o formato de fórum aberto aos leitores, que muitas vezes apresentam contribuições brilhantes em temas que os observadores da equipe não conseguiram perceber ou não deram conta de comentar.

Mas o impossível se torna menos impossível quando se tem no comando alguém do porte de Alberto Dines. Pouca coisa escapa à observação do mestre, muitas vezes para desespero de seus comandados. É tamanha a capacidade de trabalho e de percepção dos problemas da imprensa que dá, sim, para dizer que as eventuais derrapadas deste OI são de responsabilidade exclusiva da equipe e devem ter ocorrido quase sempre nas férias do editor-responsável.

De toda maneira, engana-se quem acredita que observar a imprensa é tarefa simples. Requer, como se pode ler acima, um compromisso não apenas com a leitura dos jornais e revistas, acompanhamento diário dos sites, telejornais e noticiários radiofônicos. O observador de fato vive em permanente atenção, acompanha e tenta compreender os movimentos políticos e ideológicos em curso no país e no mundo. Noves fora o fato de que notícia não tem hora para acontecer.

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A atividade, porém, é compensadora e vai dar saudade. A reflexão contida neste artigo ocorre em clima de despedida, porque após exatos nove anos e seis meses, este observador está deixando a casa para novos desafios profissionais. Neste período, foram muitos os textos, boa parte deles com foco na observação do noticiário político nacional, mas muito maior foi o trabalho na ‘cozinha’ do OI. Cabe então um breve relato pessoal, na verdade um registro do respeito e entusiasmo pelo projeto do Observatório da Imprensa.

Em agosto de 2000, com apenas 30 anos, comecei a trabalhar neste OI, cuidando da seção ‘Entre Aspas’, dedicada a registrar as matérias sobre mídia publicadas nos grandes jornais e sites especializados. Era o início de um aprendizado. Trabalhar ao lado do editor-chefe Luiz Egypto foi um privilégio e também um desafio, porque quase nada escapa ao olhar criterioso de Egypto. Nos primeiros anos, o time se completava com a carismática e querida Marinilda Carvalho, a melhor copydesk, para usar outra expressão antiga,com quem já trabalhei – não há texto que a Mari não seja capaz de melhorar, na forma e no conteúdo.

Ao longo deste tempo todo, além Do ‘Entre Aspas’ e do trabalho editando os artigos dos colaboradores e leitores, foram muitas as polêmicas, os artigos críticos em relação ao comportamento de praticamente todos os veículos de imprensa. Há obviamente um ônus em ser um observador, porque ninguém gosta de ser criticado.

Em quase dez anos de atividade, cabe aqui a lembrança de um único processo judicial motivado por um artigo escrito por mim, movido pelo jornalista Cláudio Humberto Rosa e Silva, em 2004. A causa, que já transitou em julgado, foi perdida. O artigo nem tinha foco em CH, mas, em uma citação lateral, faltou experiência e um adjetivo mal colocado abriu brecha para a reclamação do jornalista. Vivendo e aprendendo…

A eventual incompreensão de colegas com o trabalho de observação da mídia, aliás, é natural, quase intrínseca, até porque jornalistas têm egos ‘argentinos’ – um bom negócio é comprá-los pelo que valem e vender pelo que acham que valem, como diz uma piada antiga e politicamente incorreta.

Tudo somado, o que fica é, além do aprendizado e a percepção mais acurada do próprio exercício da profissão (sempre trabalhei em outros veículos de imprensa paralelamente ao Observatório), uma forte convicção de que o projeto é fundamental para a construção de um país mais democrático. Pode parecer descabido, mas é verdadeiro, porque se a imprensa é um dos pilares da democracia, ela também deve ser acompanhada de perto, cobrada e, principalmente, criticada.

Se todos os poderes precisam de fiscalização, o tal ‘quarto poder’ não pode simplesmente pairar acima de todas as instituições. Estão aí casos clássicos, como o da Escola Base, que não me deixam mentir. Já escrevi neste Observatório que no episódio da escola, o Prêmio Esso de Jornalismo naquele ano de 1994 cabia ao jornal Diário Popular, que não publicou uma linha sobre o caso, apesar da pressão do departamento comercial, porque seus editores duvidaram da história.

Sim, o grande fiscal da imprensa é quem paga pela informação que recebe, ou deixa de pagar se fica insatisfeito, mas este fiscal precisa de subsídios para formar a sua opinião sobre a mídia. E este é justamente o papel dos observatórios: ajudar o público a entender melhor o que está lendo, ouvindo ou assistindo na televisão. Salutar, portanto, a iniciativa. E quanto mais observatórios, melhor.

Por fim, cabe um agradecimento especial a toda a equipe do OI pela convivência sempre fraterna. Egypto, Luciano, Letícia Nunes, José Carlos Marão, Jô Amado, Larriza Thurler, Maria Luiza Werle, Andrea Baulé, Leila Sarmento, Spacca, todos os profissionais com quem tive o prazer e privilégio de trabalhar.

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Quando avisei a Alberto Dines que escreveria este texto, fiz questão de dizer que não sairia algo piegas: a ideia era escrever uma reflexão sobre este período integrando equipe do OI e que agora se encerra. Impossível, porém, não registrar a emoção de deixar de trabalhar ao lado de alguém que tanto se admira. Dines é mais do que um ícone no jornalismo brasileiro. É a um só tempo um mestre e um colega, capaz de ensinar muito, mas também de refletir junto sobre questões que apenas finge não dominar. No final, o efeito é o mesmo: aprendizado constante e a sensação de que é sempre preciso e possível ir além, fazer mais e melhor. Isto é Alberto Dines, a quem agradeço pela confiança, sempre, e sobretudo pela convivência, que certamente não se encerra com o fim deste ciclo.