Nas últimas semanas, muito se falou de Petra Laszlo. Não apenas se falou sobre a jornalista, mas se vociferou contra a sua atitude de provocar a queda de um refugiado que carregava uma criança no colo. Muitos, diante da cena, sentiram asco, indignação, revolta: reações advindas do sentido de justiça que espontaneamente assoma diante de quem assiste a uma ação tão covarde.
A análise imediata que fazemos desse sentimento julga que se trata de uma resposta natural de quem compassivamente se coloca no lugar do outro. Entretanto, quando acaba a cena de injustiça, acaba também a comiseração, que, na verdade, nada mais é que autocomiseração, autopiedade. Quando passa a cena que agride o espectador, logo passa a dor que latejava durante a exposição às imagens; e, assim, estamos prontos para outras, outras e mais outras imagens. Estranho!
Seria realmente a “revolta” do espectador fruto do senso de justiça? Vejamos. O “estar pronto para outra imagem” parece subdizer que o consumo dessas imagens que pululam a cada momento – por exemplo, nos jornais de televisão – comporta, de forma oculta, um sentimento de outra natureza. Por mais que a imagem seja terrível, estamos com o dedo clicando para repetir para nós mesmos ou compartilhar com outros o conteúdo sob a justificativa do repúdio.
A cena que nos comove de súbito e depois nos demove com a mesma rapidez atua como uma espécie de anestésico, um tipo de narcótico pictórico que, a cada vez que é usado (visto), nos alivia pelo extravasamento momentâneo da fúria. Terminada a cena, estamos prontos para uma outra, ou, simplesmente, voltamos à mesma cena, acessando-a inúmeras vezes pela internet. Parece que há um “miúdo prazer” dissimulado em tal fúria.
A cena que vemos é frequentemente a purgação temporária para aquilo que odiamos em nós mesmos. A cada repetição experimentamos um alívio pela descarga de um ódio “mais que justificado”. O jornalismo (se já não bastassem as mídias sociais) costuma nos presentear em nossas casas com cenas que alimentam um rito de purgação, visto que, a cada momento, imagens e mais imagens chegam às “caixas de entrada” da imprensa, pois no dia-a-dia há sempre alguém de prontidão com o dedo no gatilho da câmera de celular. Contudo, o efeito é inverso: esse bombardeio de imagens nos deixa ainda mais embotados pela anestesia psicológica que recebemos quando vemos nossas próprias misérias na forma da miséria dos outros.
O “jornalismo das imagens”
Esse tipo de “revolta” da excitação do ódio é um tipo de revolução que não re-volve e não resolve nada: continuamos gélidos, chafurdados tacitamente na própria vergonha transfigurada em ódio pela vergonha alheia, pois o que sempre subsiste ao ódio dedicado a outro é a própria vergonha inconfessa – aquela voz humana calada incapaz de confessar “não um pecado, mas uma infâmia”, como disse Álvaro de Campos.
Ao vermos a cena infeliz, nossos olhos ficam arregalados, apertamos os dentes, nossas mãos crispam de ódio – mas, tão logo termina o efeito do “consumo” visual, volta a dependência de imagens capazes de cobrir a própria vergonha diante da nudez do outro. As imagens propaladas todos os dias pelos meios de comunicação podem ser o ensejo para uma transformação ou somente a repetição (o que normalmente ocorre) de um lenitivo que esconde a nossa própria decadência humana.
O jornalismo hodierno vivencia uma exagerada fé na imagem, como se esta fosse a garantia de uma maior fidelidade ao “fato”; com efeito, mirram as mãos que mostravam, pela verve da escrita jornalística, aquilo que nenhuma imagem seria capaz de reportar.
É inegável a importância da imagem para o fazer jornalístico. No entanto, isso não deverá torná-lo refém do gosto de um espectador mais afeito a uma forma de comunicação que exigirá dele menos esforço. Em tempos nos quais a tecnologia serve cada vez mais à imprensa, é preciso colocar a questão da desmedida que encontramos no “jornalismo das imagens”, que provoca, indubitavelmente, excitação, mas nem sempre mostra o acontecimento do dia.
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Eduardo da Silveira Campos é doutorando em Filosofia