Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Relativismo de causa

Aceitar, sem as devidas reflexões, o ‘financiamento eleitoral praticado por fora’ (expressão de Roberto Jefferson em artigo publicado na Folha de S. Paulo, Tendências/Debates, A-3, 18/7/05), ou seja, o caixa 2, como única causa da corrupção que assola o sistema político e ameaça cobrir o governo numa onda de denúncias de esquemas de propinas e favorecimentos, significaria acatar o discurso ora dominante (de denúncias e justificativas) na tentativa de relativizar questão tão delicada, poder-se-ia dizer até, nerval da vida pública, de nossa história. Se ‘a ocasião faz o ladrão’, regras obsoletas e práticas obscuras de financiamento de campanhas eleitorais absolveriam, de certa forma, as distorções e desvios praticados em nome da manutenção do jogo político. Os envolvidos, na verdade, coadjuvantes e herdeiros de um arraigado sistema de fisiologismos e favores, no máximo poderiam ser condenados por crimes eleitorais, eventualmente, terem o mandato ou os direitos políticos cassados.

Uma vez mais se relativizam os discursos – a culpa não é dos autores de atos ilícitos, mas de um sistema corrupto que obriga aqueles que exercem o poder a se render a tais práticas para a manutenção da ordem constituída, ou do próprio poder, se quiser.

Se da meada puxa-se o fio, deve-se distendê-lo até o fim – ainda que implique mais embaraço para o governo, que pelo menos não poderia ser acusado de inepto ou conivente. Cortando na própria carne, para usar uma expressão em voga, o governo daria o exemplo, mais: sinalizaria à sociedade que mudanças profundas são necessárias e dependem do apoio popular, do engajamento dos intelectuais e de políticos que não tenham medo de enfrentar práticas obscuras e retrógradas, a fim da obtenção de mais transparência e lisura no trato público.

Tudo, é claro, depende até certo ponto da capacidade de articulação do governo (até por questão de sobrevivência), mas também da disposição dos demais partidos e dos segmentos da sociedade, principalmente os mais abastados ou formadores de opinião – de novo se resvala na questão da relativização dos discursos no palco (ou circo, como prefere Roberto Jefferson) onde são engendrados: a mídia.

A importância da mídia é fundamental tanto no que ela pode fazer como no que deixa de fazer – tendo a garantia do espetáculo costuma apontar os seus holofotes e seguir atrás, quando muitas vezes o desejável seria ir à frente. Como as fronteiras são tênues facilmente são transpostas – corre-se o risco do prejulgamento ou da omissão.

Armadilha fácil

Dessa forma, a mídia também não escapa à lógica da relativização – entroniza atitudes pouco louváveis, dá voz a personagens nada lisonjeiras, enruste preconceitos, dá margem a distorções – quando não ajusta o foco e julga que a compra eventual de um deputado numa votação é menos grave do que a instituição de um mensalão, quando sub-repticiamente aceita que uma sonegaçãozinha de imposto não seja tão grave quanto os desvios do governo ou quando se rende a interesses escusos e não presta com isenção e responsabilidade o seu papel.

Nesse contexto de crise, a mídia também tem a oportunidade de avaliar o próprio desempenho – se deseja fazê-lo é outra questão – tem os instrumentos e os meios. Convém lembrar, no entanto, que por trás do ethos representativo da marca de cada empresa midiática estão os homens (jornalistas e comunicadores), cidadãos como os demais brasileiros, nem piores nem melhores (para seguir o discurso relativista do deputado já citado acima).

Eis o perigo, imiscuído no próprio discurso, armadilha fácil para a falta de reflexões mais profundas que possam engendrar uma nova sociedade no engajamento por respostas, respostas positivas que passem a limpo a prática política e a vida pública nesse país.

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Poeta e funcionário público, Jaú, SP