Ao voltar de Barretos, o meu correio eletrônico já estava entupido de mensagens de amigos e leitores comentando e me pedindo para comentar a reportagem da revista Veja sobre as “atividades clandestinas” do ex-ministro José Dirceu, um dos denunciados no processo do “mensalão”, que tramita no Supremo Tribunal Federal e ainda não tem data para ser julgado.
Só agora, no começo da tarde de segunda-feira [29/8], consegui ler a matéria. Em resumo, como está escrito na capa, sob o título “O Poderoso Chefão”, ao lado de uma foto em que Dirceu aparece de óculos escuros e sorridente, a revista afirma:
“O ex-ministro José Dirceu mantém um “gabinete” num hotel de Brasília, onde despacha com graúdos da República e conspira contra o governo da presidente Dilma”.
A sustentar a grave “denúncia”, a revista publica dez reproduções de um vídeo em que, além de Dirceu, aparecem ministros, parlamentares e um presidente de estatal entrando ou saindo do “bunker instalado na área vip de um hotel cinco estrelas de Brasília, num andar onde o acesso é restrito a hóspedes e pessoas autorizadas”.
Nas oito páginas da “reportagem” – na verdade, um editorial da primeira à última linha, com mais adjetivos do que substantivos – não há uma única informação de terceiros que não seja guardada pelo anonimato do off ou declaração dos “acusados” de visitar o bunker de Dirceu confirmando a tese da Veja.
Perguntas sem respostas
Fiel a uma prática cada vez mais disseminada na grande mídia impressa, a tese da conspiração de Dirceu contra o governo Dilma vem antes da apuração, que é feita geralmente para confirmar a manchete, ainda que os fatos narrados não a comprovem.
Para dar conta da encomenda, o repórter se hospedou num apartamento no mesmo andar do ex-ministro. Alegando ter perdido a chave do seu apartamento, pediu à camareira que abrisse o quarto de Dirceu e acabou sendo por ela denunciado ao segurança do hotel Naoum Plaza, que registrou um boletim de ocorrência no 5º Distrito Policial de Brasília, por tentativa de invasão de domicílio.
Li e reli a matéria duas vezes e não encontrei nenhuma referência à origem das imagens publicadas como “prova do crime”, o primeiro dos mistérios suscitados pela publicação da matéria. O leitor pode imaginar que as cenas foram captadas pelas câmeras de segurança do hotel, mas neste caso surgem outras perguntas:
** Se o próprio hotel denunciou o repórter à polícia, segundo O Globo de domingo, quem foi que lhe teria cedido estas imagens sem autorização da direção do Naoum?
** Se foi o próprio repórter quem instalou as câmeras, isto não é um crime que lembra os métodos empregados pela Gestapo e pelo império midiático dos Murdoch?
** As andanças pelo hotel deste repórter, que se hospedou com o nome e telefone celular verdadeiros, saiu sem fazer check-out e voltou dando outro nome, para supostamente entregar ao ex-ministro documentos da prefeitura de Varginha, são procedimentos habituais do chamado “jornalismo investigativo”?
As dúvidas se tornam ainda mais intrigantes quando se lê o que vai escrito na página 75 da revista:
“Foram 45 horas de reuniões que sacramentaram a derrocada de Antonio Palocci e durante as quais foi articulada uma frustrada tentativa do grupo do ex-ministro de ocupar os espaços que se abririam com a demissão. Articulação minuciosamente monitorada pelo Palácio do Planalto, que já havia captado sinais de uma conspiração de Dirceu e de seu grupo para influir nos acontecimentos que ocorriam naquela semana [6,7 e 8 de junho, segundo as legendas das fotos] – acontecimentos que, descobre-se agora, contavam com a participação de pessoas do próprio governo”.
A afirmações contidas neste trecho suscitam outras perguntas.
** Como assim? Quem do governo estava conspirado contra quem do governo?
** Por acaso a revista insinua que foi o próprio governo quem capturou as imagens e as entregou ao repórter da Veja?
** Por que a reportagem/editorial só publica agora, no final de agosto, fatos ocorridos e imagens registradas no começo de junho, no momento em que o diretor de Redação da revista está de férias?
Boa lembrança
Só uma coisa posso afirmar com certeza, depois de 47 anos de trabalho como jornalista: matéria de tal gravidade não é publicada sem o aval expresso dos donos ou dos acionistas majoritários. Não é coisa de repórter trapalhão ou editor descuidado.
Ao final da matéria, a revista admite que “o jornalista esteve mesmo no hotel, investigando, tentando descobrir que atração é essa que um homem acusado de chefiar uma quadrilha de vigaristas ainda exerce sobre tantas autoridades (…) E conseguiu. Mas a máfia não perdoa”.
Conseguiu? Há controvérsias… No elenco de nomes apresentados pela revista como frequentadores do “aparelho clandestino” de Dirceu, no entanto, não encontrei nenhum personagem que seja publicamente conhecido como inimigo do ex-ministro Antonio Palocci.
O texto todo foi construído a partir de ilações e suposições para confirmar a tese – não de informações concretas sobre o que se discutiu nestes encontros e quais as consequências efetivas para a queda de Palocci.
Não tenho procuração para defender o ex-ministro José Dirceu, nem ele precisa disso. Escrevo para defender a minha profissão, tão aviltada ultimamente pela falta de ética de veículos e profissionais dedicados ao vale-tudo de verdadeiras gincanas para destruir reputações e enfraquecer as instituições democráticas.
É um bom momento para a sociedade brasileira debater o papel da nossa imprensa – uma imprensa que não admite qualquer limite ou regra, e se coloca acima das demais instituições para investigar, denunciar, acusar e julgar quem bem lhe convier.
Diante de qualquer questionamento sobre as responsabilidades de quem controla os meios de comunicação, logo surgem seus porta-vozes para denunciar ameaças à liberdade de imprensa.
Calma, pessoal. De vez em quando, convém lembrar que repórter não é polícia e a imprensa não é justiça, e também não deveria se considerar inimputável como as crianças e os índios. Vejam o que aconteceu com Murdoch, o ex-todo-poderoso imperador. Numa democracia, ninguém pode tudo.
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[Ricardo Kotscho é jornalista]