A direção da Folha de S.Paulo, simplesmente, autorizou a um elemento estranho à redação (mas não aos diretores), o sociólogo Demétrio Magnoli, a chamar de ‘delinquentes’ dois repórteres do jornal, autores de matéria sobre a singular visão do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) da miscigenação racial no Brasil. Vocês, não sei, mas eu nunca vi isso na minha vida, nesses 24 anos de profissão. Nunca. Por tabela, também o colunista Elio Gaspari, que desceu a lenha no malfadado discurso racista de Demóstenes Torres, acabou no balaio da delinquência jornalística montado por Magnoli.
Das duas uma: ou a Folha dá direito de resposta aos repórteres insultados (Laura Capriglione e Lucas Ferraz), como, imagino, deve prever o seu completíssimo Manual de Redação, ou encerra as atividades. Isso porque Magnoli, embora frequente os saraus do Instituto Millenium, não entende absolutamente nada de jornalismo e confundiu reportagem com opinião.
A matéria de Laura e Lucas nada tem de ideológica, nem muito menos é resultado de ‘jornalismo engajado’ (contra o DEM, na Folha??). A impressão que se tem é que houve falha nos filtros internos da Redação e deixaram passar, por descuido ou negligência, uma matéria cujas conseqüências aí estão: o senador Torres, sujeito oculto da farsa do grampo montada em consórcio entre a Veja e o STF, virou, também, o símbolo de um revisionismo histórico grotesco, no qual se estabelece como consensual o estupro de mulheres negras nas senzalas da Colônia e do Império do Brasil.
Rumos finais
A reação interna à repercussão de uma matéria elaborada por dois repórteres da sucursal de Brasília, terceirizada por Demétrio Magnoli, é emblemática (e covarde), mas não diz respeito somente à Folha de S.Paulo. O artigo ‘Jornalismo delinquente’ [ver íntegra abaixo], publicado na edição de terça-feira (9/3), na seção ‘Tendências/Debates’ da pág. 3 do jornal, nada tem a ver com políticas de pluralidade de opiniões, mas com intimidação pura e simples voltada para o enquadramento de repórteres e editores – e não só da Folha – para os tempos de guerra que se aproximam.
A recusa de Aécio Neves em ser vice de José Serra deverá jogar o DEM, outra vez, no vácuo dos tucanos, a reviver a dobradinha iniciada entre Fernando Henrique Cardoso e o PFL, de triste lembrança. O imenso mal estar causado pela fala de Demóstenes Torres na tribuna do Senado Federal, resultado do trabalho rotineiro de dois repórteres, acabou interpretado como inaceitável fogo amigo. Capaz, inclusive, agora, de a dupla de jornalistas correr perigo de empregabilidade, para usar um termo caro à equipe econômica tucana dos tempos de FHC.
Demétrio Magnoli, impunemente, chama a reportagem da Folha de S.Paulo de ‘panfleto disfarçado de reportagem’, afirmação que jamais faria, e muito menos a publicaria, sem autorização da direção do jornal, precedida de uma avaliação editorial e política bastante criteriosa. O fato de se ter permitido a Magnoli, um dos arautos da tese conceitualmente criminosa de que não há racismo no Brasil, insultar dois repórteres e o principal colunista da Folha, em espaço próprio dentro de uma edição do jornal, deixa a todos – jornalistas e leitores – perplexos com os rumos finais da velha mídia e de seu inexorável suicídio editorial em nome de uma vingança ideológica, ora baseada em doutrina, ora em puro estado de ódio racial e de classe.
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O jornalismo delinquente
Demétrio Magnoli # reproduzido da Folha de S.Paulo, 9/3/2010
As pessoas, inclusive os jornalistas, podem ser contrárias ou favoráveis à introdução de leis raciais no ordenamento constitucional brasileiro. Não é necessário, contudo, falsear deliberadamente a história como faz o panfleto disfarçado de reportagem publicado nesta Folha sob as assinaturas de Laura Capriglione e Lucas Ferraz (‘DEM corresponsabiliza negros pela escravidão’, Cotidiano, 4/3).
A invectiva dos repórteres engajados contra o pronunciamento do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) na audiência do STF sobre cotas raciais inscreve no título a chave operacional da peça manipuladora.
O senador referiu-se aos reinos africanos, mas os militantes fantasiados de repórteres substituíram ‘africanos’ por ‘negros’, convertendo uma explanação factual sobre história política numa leitura racializada da história.
Não: ninguém disse que a ‘raça negra’ carrega responsabilidades pela escravidão. Mas se entende o impulso que fabrica a mentira: os arautos mais inescrupulosos das políticas de raça atribuem à ‘raça branca’ a responsabilidade pela escravidão.
Num passado recente, ainda se narrava essa história sem embrulhá-la na imaginação racial. Dizia-se o seguinte: o tráfico atlântico articulou os interesses de traficantes europeus e americanos aos dos reinos negreiros africanos. Isso não era segredo ou novidade antes da deflagração do empreendimento de uma revisão racial da história humana com a finalidade bem atual de sustentar leis de divisão das pessoas em grupos raciais oficiais.
Demóstenes Torres disse o que está nos registros históricos. Os repórteres a serviço de uma doutrina tentam fazer da história um escândalo.
O jornalismo que abomina os fatos precisa de ajuda. O instituto da escravidão existia na África (como em tantos outros lugares) bem antes do início do tráfico atlântico. Inimigos derrotados, pessoas endividadas e condenados por crimes diversos eram escravizados. A inexistência de um interdito moral à escravidão propiciou a aliança entre reinos africanos e os traficantes que faziam a rota do Atlântico. Os empórios do tráfico, implantados no litoral da África, eram fortalezas de propriedade dos reinos africanos, alugadas aos traficantes.
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, convocado para envernizar a delinquência histórica dos repórteres (‘África não organizou tráfico, diz historiador’), conhece a participação logística crucial dos reinos africanos no negócio do tráfico. Mas sofreu de uma forma aguda e providencial de amnésia ideológica ao afirmar, referindo-se ao tráfico, que ‘toda a logística e o mercado eram uma operação dos ocidentais’.
Os grandes reinos negreiros africanos controlavam redes escravistas extensas, capilarizadas, que se ramificavam para o interior do continente e abrangiam parceiros comerciais estatais e mercadores autônomos. No mais das vezes, a captura e a escravização dos infelizes que passaram pelas fortalezas litorâneas eram realizadas por africanos.
Num livro publicado em Londres, que está entre os documentos essenciais da história do tráfico, o antigo escravo Quobna Cugoano relatou sua experiência na fortaleza de Cape Coast: ‘Devo admitir que, para a vergonha dos homens de meu próprio país, fui raptado e traído por alguém de minha própria cor’. Laura e Lucas, na linha da delinquência, já têm o título para uma nova reportagem: ‘Negros corresponsabilizam negros pela escravidão’.
O tráfico e a escravidão interna articulavam-se estreitamente. No reino do Ndongo, estabelecido na atual Angola no século 16, o poder do rei e da aristocracia apoiava-se no domínio sobre uma ampla classe de escravos.
No Congo, a população escrava chegou a representar cerca de metade do total. O reino Ashanti, que dominou a Costa do Ouro por três séculos, tinha na exportação de escravos sua maior fonte de renda. Os chefes do Daomé tentaram incorporar seu reino ao império do Brasil para vender escravos sob a proteção de d. Pedro 1º.
Em 1840, o rei Gezo, do Daomé, declarou que ‘o tráfico de escravos tem sido a fonte da nossa glória e riqueza’.
Em 1872, bem depois da abolição do tráfico, o rei ashanti dirigiu uma carta ao monarca britânico solicitando a retomada do comércio de gente.
O providencial esquecimento de Alencastro é um fenômeno disseminado na África. ‘Não discutimos a escravidão’, afirma Barima Nkye 12, chefe supremo do povoado ganês de Assin Mauso, cuja elite descende da aristocracia escravista ashanti. Yaw Bedwa, da Universidade de Gana, diagnostica uma ‘amnésia geral sobre a escravidão’.
Amnésia lá, falsificação, manipulação e mentira aqui. Sempre em nome de poderosos interesses atuais. [Demétrio Magnoli, sociólogo, é autor de Uma Gota de Sangue – História do Pensamento Racial‘ (SP, Contexto, 2009)]
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Jornalista