O dr. Julinho (Júlio de Mesquita Filho) dizia que o dinheiro não parava de entrar. O jornal fechava as portas, o dinheiro entrava por baixo das portas. Os classificados na época bombavam.
O Estadão estava rico. O dr.Julinho tinha três filhos – Julio Neto,Ruy e Carlão – e um jornal só. Não dava para todos. Primogênito era só um, Júlio Neto, e a coroa da família real é dos primogênitos.
Por isso, em 1965 ele resolveu investir um caminhão de dinheiro num jornal novo para acomodar o filho que não era primogênito, mas tinha sangue de jornalista. Ruy Mesquita ganhou seu jornal. Para Carlão, bastou uma rádio, com muita música clássica, transmissão de corrida de cavalos e locutores com voz elegante e dicção sofisticada. Pianos ao cair da tarde.
Depois de uma campanha publicitária espetaculosa, que repetia imagens de um elefante trazendo a inscrição “às três da tarde” nas costas, o Jornal da Tarde foi lançado. Saía no mais improvável dos horários e no final da tarde sequer tinha sido distribuído pela cidade toda.
Um ruidoso fracasso de distribuição. Foi preciso ir recuando o horário de fechamento aos poucos para que a cidade fosse percebendo a existência do jornal.
Forças vivas
O jornal era turbulento. A antítese de seu irmão mais velho, o modorrento, sisudo e pedregoso Estadão. O velho era chato, mas cada uma de suas pedras era um tijolo institucional. Um monumento, com a gravidade que costumam ter os monumentos.
O Jornal da Tarde tinha uma redação de piradinhos. Era comandada por Mino Carta, o jornalista que se orgulhava de ter criado e dirigido uma revista sobre automóveis – a Quatro Rodas – sem jamais ter dirigido um, e Murilo Felisberto, um mineiro melífluo e ferozmente inteligente, que se divertia em dançar minuetos de bondades e maldades com aquela redação repleta de candidatos a gênios.
Eram todos Hemingways em gestação, Godards ainda incompletos, Glaubers em preparação. Procurando bem, atrás daquelas velhas colunas e das velhas mesas de aço seria possível achar algum Proust escondido, que ganhava honestamente seu dinheiro falando mal do trânsito do coronel Fontenelle, mas preparava em segredo a obra prima que iria abalar a literatura mundial e nos dar o primeiro Nobel.
Lá naquele tumulto você podia achar Rogério Sganzerla, Fernando Morais, Maurice Capovilla, Sábato Magaldi, Fernando Portella, Leo Gilson Ribeiro, Jota Jota de Moraes, Mauricio Kubrusly, Olney Kruse e seu aparato kitsch, Eric Nepomuceno, que ainda não tinha descoberto a América, o Luiz Eduardo da Rocha Merlino, o foca inteligente de nariz empinado que a ditadura eliminaria depois de bárbaras torturas, Ewaldo Dantas Ferreira ensinando um pouco da vida aos focas. Um viveiro fantástico dos mais curiosos e vivazes exemplares da espécie humana.
Onde mais seria possível ler uma cobertura de um Palmeiras x Corinthians assinada pelo crítico de teatro Sábato Magaldi e ilustrada por Clóvis Graciano? Onde mais seria possível ler um texto de Cláudio Bojunga procurando a torcida corinthiana desparecida na cidade no dia em que ganhou um título depois de 24 anos?
Eu mesmo, um foca metido, fui enviado a Itapetininga, no interior de São Paulo, para fazer uma reportagem sobre o aniversário da cidade. O jornal não se prestava muito à cobertura dessas tediosas efemérides, mas como era preciso puxar o saco de um representante comercial do Estadão na região, lá fui eu desperdiçar uma preciosa tarde de sábado.
Escrevi nada mais do que a verdade que me contaram – a cidade foi fundada por uma mula que empacou num determinado lugar. As pessoas não conseguiram tirar a mula do lugar e acabaram instalando-se em volta dela. Nos dias seguintes, a ira de Deus, da prefeitura, da Câmara, do Lions, do Rotary e das chamadas forças vivas de Itapetininga desabou sobre a minha cabeça.
Vieram delegações da cidade pedindo expressamente o meu escalpo para ser exposto na praça pública de Itapetininga, mas Mino Carta resistiu bravamente à selvagem investida e poupou minha vida e meu emprego.
Agonia lenta
O Jornal da Tarde e suas histórias merecem uns cem livros e pelo menos um ou dois deverá ser escrito.
Alguém haverá de lembrar do inusitado de uma sucursal carioca rigorosamente dividida entre lacerdistas e comunistas repartindo a hegemonia do noticiário. Uma redação que era uma Guerra Civil Espanhola instalada na rua da Quitanda.
Será preciso lembrar das aventuras e dos textos new journalism de Marcos Faerman, o gaúcho revolucionário que trocaria de bom grado sua república socialista por uma faixa de campeão do Grêmio de Porto Alegre.
Irá lembrar também das coberturas históricas como a do primeiro transplante de coração do Brasil, ou da tragédia de Caraguatatuba, ou da capa do menino chorando depois do desastre de Sarriá, sem falar da famosa capa preta de luto no dia da rejeição da emenda das diretas.
Alguém irá perguntar como é que um jornal revolucionário como esse, que marcou época na imprensa brasileira, foi para o espaço.
Não há muita ciência na resposta: foi para o espaço porque na verdade o jornal que foi tanta coisa nunca foi nada dentro da empresa que o gerou. Era apenas expressão de um conflito familiar entre aqueles que o criaram e geriram e aqueles que sempre o trataram como o mais incômodo dos trastes.
Entre os Mesquita que o criaram e aqueles que ajudaram a matá-lo aos poucos, impondo-lhe uma lenta agonia, existe a maldição das empresas familiares onde todos os parentes se amam e se odeiam até a morte.
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[Sandro Vaia é jornalista]