O Quarto Poder é um dos preferidos da Sétima Arte. Conjugam-se admiravelmente, frutos dos mesmos tempos. O cinema tem sido um dos mais assíduos e rigorosos praticantes do media criticism, a crítica da mídia. O repórter — como mocinho ou bandido, romantizado ou demonizado, dominado pelo sensacionalismo ou ciente de suas responsabilidades — é o símbolo desta obsessão, fruto das simbioses da Era da Informação
Insólito e engenhoso foi o lançamento de “Spotlight” no Brasil. Sem holofotes, sem spots nem lights, quase clandestino. Mas as redações foram devidamente alertadas para a estreia na quinta, 7 de janeiro, nos cinemas do Rio e São Paulo de um surpreendente blockbuster capaz de arrebatar indicações e premiações na próxima festa do Oscar (28 de Fevereiro).
Na sexta-feira o caderno de cultura de “Valor” já saiu com uma qualificada resenha, também “Veja”. Os roteiros da “Vejinha-S.Paulo”, “CartaCapital” e os guias dos jornalões paulistanos saíram com mini-resenhas assinadas por cinéfilos de primeira grandeza. No domingo, trazida da página 8 para a página 5, a coluna da ouvidora Vera Guimarães Martins tratou exclusivamente do filme com o seu título em inglês no cabeçalho. No mesmo domingo “O Globo” encarregou o colunista do dia, Artur Xexéo (ex-editor do caderno) para cuidar do assunto.
“Época” não saiu no fim de semana: com as festas de fim-de-ano, a direção da revista experimentava a periodicidade quinzenal. O “Estadão”, também antenado com as alas mais conservadoras da Igreja, se contentou com a mini-resenha no roteiro encartado na edição de sexta.
Deu certo, certíssimo, a estratégia do lançamento. Apesar das férias e recessos, as salas do Rio e S. Paulo encheram na sexta, sábado e domingo e não apenas com profissionais da imprensa – em número cada vez mais escasso.
Jornalismo sempre rendeu espetáculos muito intensos, fortes, o público quer saber o que se passa nos bastidores de uma instituição tão fascinante e arrogante. Ainda mais quando os jornalistas ficaram muito bem na fita e o bom jornalismo foi tão louvado nas resenhas.
E o vilão (ou vilã) ? Como é que os resenhistas trataram uma instituição tão poderosa, relapsa e indulgente com os prevaricadores? Apesar do relato sóbrio, quase solene, o filme é uma das mais severas e contundentes denúncias contra a complacência da hierarquia católica com os sacerdotes pedófilos.
Pedofilia não é apenas pecado ou desequilíbrio mental. Abuso sexual contra crianças é crime, contra crianças pobres e desprotegidas é crime ainda maior. As resenhas, por acaso, conseguiram antecipar para os leitores-espectadores a intensidade daquele relato tão escrupuloso e, por isso, tão arrasador?
Os 87 sacerdotes-infratores descobertos pelos repórteres da força-tarefa Spotlight do Boston Globe, junto com seus superiores nas instâncias máximas da cúria e a sórdida rede de proteção inserida no judiciário e polícia do estado de Massachusetts são flagrados impiedosamente ao longo dos 129 minutos do filme.
Não nas resenhas. A bravura daquele grupo de jornalistas está claramente exposta tanto no filme como nos textos que deveriam promove-lo na mídia impressa. Porém a vilania daqueles que se servem da religião para satisfazer baixos instintos, embora exposta com crueza no filme, parece atenuada, em clave baixa, nas avaliações prévias da nossa imprensa. Nosso resenhismo conseguiu o milagre de contar uma história apenas com mocinhos, sem malfeitores. Para evitar ilações e generalizações.
O estado democrático, laico e secular não existe em Boston e aparentemente nunca existiu – talvez por isso é que o novo diretor do jornal (Marty Baron, hoje na direção do Washington Post), judeu, recém-chegado da Flórida, decidiu reabrir um caso que o jornal não levara adiante cinco anos antes. Um bostoniano genuíno ou o americano de formação católica certamente não ousaria desenterrar aquele escândalo.
Essa dissonância entre as perversidades e perversões contidas no relato cinematográfico e o material que deveria servir para promovê-lo sugere uma ponte Boston-Brasil, um sutil faz-de-conta em que a excelência da obra deveria fixar-se no exemplo edificante do jornal e dos jornalistas. Em segundo plano, descoloridas, ficariam as perversidades e perversões que os levaram a correr tantos riscos.
A maneira de epílogo aparece a lista das localidades nos EUA e em outros países, onde padres-pedófilos foram denunciados. O Brasil está presente. Sem comentários.
Lista das resenhas
** “Valor”, caderno “Eu&Fim de Semana”, sexta-feira, 8 de janeiro – “Um excelente retrato da vida jornalística”, p.30
** “Estadão”, 8/1, encarte “Divirta-se” – “É tudo verdade”, p. 30
** “Folha”, 8/1, encarte “Guia” – “Jornalistas apuram abusos da Igreja Católica”, p. 22
** “CartaCapital”, “Bons Bostonianos”, p. 81
** “Veja”, “Corpo de Delito”, p. 92
** “Veja/SP”, “O bom jornalismo”, p. 70
** “Folha”, 10/1, primeiro caderno, “Spotlight e a lorota da notícia”, p.5
** “O Globo”, Segundo Caderno, “Um filme sobre o bom jornalismo”, p.10.
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Alberto Dines é jornalis, escritor e co-fundador do Observatório da Imprensa