Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Retrato de uma imprensa às vésperas dos seus 200 anos

A mídia, especialmente a mídia impressa e principalmente a diária, chega atarantada às festas de fim de ano. Ao esquema de fechamento insano, desumano, precário, acrescenta-se o extraordinário volume de páginas para acompanhar a avalanche de anúncios.


Faturar alto seria muito bom se o empresário de jornal não se comportasse exatamente como o empresário que fabrica salsichas, despreocupado com contrapartidas.


Na atual alucinação natalina subverteu-se o critério de relevância que há 400 anos comanda o processo de escolher e destacar informações nos veículos periódicos. O que entra numa edição não é necessariamente o que mais importa ao leitor, o que é destacado nem sempre é o mais pertinente. No lugar do princípio da transcendência, o império da aleatoriedade.


Dogmas ‘da casa’


Como se não bastassem estes desacertos elementares, nossas redações estão engessadas por fórmulas burocráticas estabelecidas pelo departamento comercial ou decretadas pela direção para preservar o vício da segmentação e do cadernismo.


Antes mesmo de traçado o primeiro esboço da primeira página já estão anotadas tantas recomendações e proibições, tantos preceitos e preconceitos, que a soma das criatividades do diretor de arte e do editor reduz-se a 10% do seu potencial.


A obrigação de valorizar os cadernos para adolescentes, comes & bebes, informática, turismo, TV ou a crônica feminina deixam um espaço mínimo para a valorização decente dos fatos do dia. Além disso, há os ‘especiais’ que antigamente designava-se como ‘picaretagens’, sem eufemismos porém com certo recato, e agora são vendidos despudoradamente com a promessa de destaque na primeira página.


Como se não bastasse, há os dogmas ‘da casa’ (‘uma cifra, qualquer cifra, vale mais do que um fato, qualquer fato’), os acertos do pool corporativo, as orientações da direção e a fogueira das vaidades dos colunistas. A sobra é mínima.


Ladeira abaixo


Se o panorama é desanimador nas capas dos jornais, nas páginas internas a deformação é produzida pela licenciosidade publicitária. As agências de propaganda pagam altíssimos salários aos seus criativos (aplausos calorosos!), mas isso não deve significar que esses geniais criativos tenham o direito de pisotear os cânones de leitura e da arquitetura interior de nossos jornais. Quem deve ser endeusado não é o anunciante, mas o leitor que paga para receber um jornal bem informado, bem escrito e… minimamente legível.


Um pouco de hombridade e honestidade da parte dos departamentos comerciais tornaria nossos jornais menos vulneráveis aos malabarismos circenses que infernizam a vida de quem precisa ler jornais. E, atenção: eles são em número cada vez menor.


Pouco interessa ao leitor se a agência ganhou um prêmio em Cannes ou no Canindé com a sua barafunda psicodélica concebida para liquidar as diferenças entre informação e anúncio (caso da recente campanha da agência África para a Phillips). O leitor gosta de anúncios desde que oferecidos como anúncios, sem truques ou mistificações.


As mazelas do nosso grande jornalismo não são políticas, ou melhor, podem não ser claramente políticas, mas são tantas e tão entranhadas que acabam criando padrões jornalísticos inconfiáveis no resto da mídia. Não esqueçamos que no Brasil inexistem agências de notícias autônomas, o jornal é ainda o grande pautador do rádiojornalismo, do telejornalismo e do webjornalismo. Uma pequena asneira produzida pela balbúrdia no fechamento rola ladeira abaixo com tal velocidade que em apenas 60 minutos converte-se numa asneira enorme, difícil de erradicar ou contraditar.


Reserva de qualidade


O quadro parece menos desolador nas temporadas opulentas quando a quantidade disfarça a qualidade. Fica mais visível na saison das vacas magras. Breve, em janeiro, teremos o indefectível ‘jornalismo de verão’ com edições mirradas, mais complicadas para preencher por causa dos recessos, férias, recheadas de modismos e abobrinhas sob o pretexto de atrair o público feminino.


A idéia de que leitoras só se interessam por superficialidades e mundanidades é terrivelmente injusta e preconceituosa, porém condenada à clandestinidade – tabu. Nenhuma jornalista ou colunista ousaria propor uma discussão sobre o assunto numa reunião de pauta. Nenhum jornal ou revista encomendaria uma sondagem a respeito. E, no entanto, quando as tiragens começam a cair a solução mais comum é apelar para a mulher e insistir na tal da ‘leveza’.


Temos editores da melhor qualidade, redatores talentosos, repórteres incansáveis, temos até recantos de bom nível jornalístico (caso do Valor Econômico), mas o quadro geral às vésperas das comemorações dos 200 anos da fundação da imprensa brasileira é lamentável. A festa merece convidados menos mambembes.