Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Revista disseca seu erro jornalístico

Anatomia de um erro jornalístico”. Esse é o título do relatório independente que obrigou a revista Rolling Stone a remover sua reportagem sobre um caso de estupro na Universidade da Virgínia. A matéria exclusiva, que tinha como objetivo denunciar abusos contra mulheres no ambiente universitário, acabou se tornando o pior episódio da revista norte-americana e virou um manual de práticas incorretas do jornalismo investigativo.

A reportagem da Rolling Stone, com o título Um estupro no campus, publicada em 19 de novembro, girava em torno de uma estudante chamada pelo pseudônimo “Jackie”, que alegava ter sido estuprada por sete alunos na sede de uma fraternidade no campus. A história acendeu o debate sobre abusos contra jovens nas universidades do país, mas poucos dias depois de sua publicação vários veículos de comunicação começaram a questionar o testemunho da suposta vítima. No dia 5 de dezembro os editores anunciaram a retirada do endosso às declarações de Jackie.

Segundo as conclusões da investigação, publicadas no domingo à noite, a revista cometeu três erros graves, que “poderia ter evitado”: o uso de pseudônimos, a falta de checagem da informação e a ausência de dados que confirmassem ou contradissessem a versão dada pela suposta vítima, que era a espinha dorsal da reportagem. Se tivesse seguido esses princípios, afirma o autor, a Rolling Stone poderia não ter publicado a notícia.

“Pedimos desculpas a todos os leitores e às pessoas que possam ter sido prejudicadas pela nossa reportagem e suas consequências”, declarou em comunicado Will Dana, editor-chefe da Rolling Stone. Dana se refere especialmente aos membros da fraternidade na qual Jackie disse ter sido vítima do ataque e a todos os alunos e trabalhadores da Universidade da Virgínia.

O jornalista e ganhador do prêmio Pulitzer Steve Coll foi o encarregado de encabeçar uma investigação de quatro meses e o relatório que disseca o trabalho da jornalista Sabrina Erdely e de seus superiores. Apesar de a Rolling Stone ter se retratado pela reportagem e de sua página agora dar link diretamente para a investigação, apoiada pela Columbia Journalism Review (CJR), a revista não demitiu nenhum dos jornalistas envolvidos no trabalho.

Erros em práticas jornalísticas “básicas e até rotineiras”

“A rejeição da revista à narrativa principal de Um estupro no campusé uma história de erro jornalístico que teria sido possível evitar”, escreve Coll, autor da investigação. “A reportagem desviou de seus buracos utilizando pseudônimos e omitindo onde foi obtida a informação mais importante.”

Jackie se negou, por exemplo, a dar o nome da pessoa que tinha organizado a festa onde ela supostamente fora violentada, alegando ter medo de seu agressor. Isso provocou tensão entre a entrevistada e a repórter, que temeu pela não declaração. O documento da CJR conclui que esse obstáculo foi contornado “quando os editores decidiram seguir em frente com a publicação sem saber o nome do jovem nem checar sua existência”.

A suposta vítima só disse o nome de seu agressor quando a reportagem já tinha sido publicada. Mas não conseguiu soletrar. “Isso ligou todos os alarmes”, disse Erdely aos investigadores. Ao mesmo tempo, o jornal The Washington Post preparava sua própria reportagem sobre a Universidade da Virgínia, um trabalho que anulou a já fracassada exclusiva da Rolling Stone.

Efeitos na discussão sobre os abusos

Cinco meses depois da publicação de uma reportagem que transformou em debate nacional os abusos sofridos por jovens universitárias e a impunidade de seus agressores nos centros, o material da Rolling Stone pode ter minado a confiança nas denúncias das vítimas e sua vontade de expor as agressões.

O relatório é um manual a seguir em qualquer trabalho de investigação. Dana o chamou de “uma leitura dolorosa” e “um documento fascinante sobre um fracasso jornalístico”. Ele afirma em sua mensagem que as agressões sexuais “são um problema sério” nas universidades norte-americanas e lamenta que as vítimas se sintam menos à vontade na hora de denunciá-las “por nossos erros”.

Coll admite que os casos de estupro estão entre os mais difíceis para um jornalista investigar. “Erdely teve dificuldade para decidir até que ponto podia confirmar os detalhes da versão de Jackie sem pôr em risco sua colaboração”. A jornalista justificou que não checou o relato de Jackie para não “voltar a traumatizá-la” ao reviver a experiência, mas o autor da investigação lista várias medidas que poderiam servir, no mínimo, para explicar aos leitores até que ponto a Rolling Stoneconfiava no testemunho de apenas uma pessoa.

A reputação ferida da Rolling Stone

Coll afirma que suas conclusões representam um “golpe a mais na credibilidade do jornalismo” e ressaltam a necessidade de chegar a um novo consenso “em redações antigas e novas” sobre as melhores práticas jornalísticas. A Rolling Stone cortou 25% de sua equipe desde 2008, mas o relatório não atribui a falha da reportagem a “uma falta de recursos”, e sim a “um erro metodológico, agravado por um ambiente em que vários jornalistas com décadas de experiência não questionaram nem discutiram problemas em sua investigação”.

O autor denuncia também que os editores não sanaram as dúvidas apresentadas por uma checadora (fact-checker), pessoa encarregada, em algumas publicações, de verificar fatos do trabalho de um jornalista. Segundo Coll, o editor confiou plenamente em Erdely, que considera “uma jornalista minuciosa e detalhista, que já trabalhou com histórias extremamente complicadas e com diferentes pontos de vista”.

Erdely escreve na Rolling Stone desde 2008 e se especializou em reportagens sobre crimes. Sua matéria exclusiva atraiu mais de 2,7 milhões de visitas, um recorde para a revista. Mas já está muito distante o prestígio conseguido com várias reportagens desde sua fundação em San Francisco, em 1967, entre elas o trabalho sobre o General do Exército dos EUA Stanley McChrystal, que acabou levando a sua demissão em 2010.

Dana, responsável por aquele êxito e também por esse último insucesso, declarou a Coll que a análise da reportagem sobre os abusos na Universidade da Virgínia demonstra um “fracasso” no nível individual, de procedimentos e institucional. “Todos nós envolvidos tivermos a chance de fazer mais perguntas, indagar um pouco mais, e ninguém fez isso.”

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Cristina F. Pereda, do El País, em Washington