A reportagem de capa da revista Época número 639 (14/8) (‘O passado de Dilma’) reduz quarenta e poucos anos de vida política da personagem à sua passagem, entre 1967 e 1970, por organizações políticas que adotaram a luta armada como caminho para se opor à ditadura instaurada em 1964.
Os repórteres trabalharam com uma massa considerável de material, referido no subtítulo da capa ‒ ‘Documentos inéditos revelam uma história que ela não gosta de lembrar: seu papel na luta armada contra o regime militar’. Os documentos são três processos penais que somam mais de 5 mil páginas.
Acharam nesses papéis evidências de que Dilma lidou com armas, dinheiro, documentos falsos, esconderijos. Ora, seria bizarro que ela, ocupando um papel dirigente numa organização guerrilheira, tivesse se limitado a participar de discussões teóricas, a cozinhar ou a lavar pratos.
‘Mudei com o Brasil’
O texto tem um tom inquisitório, o que equivale a ignorar a anistia decretada há 31 anos. Num quadro que encerra a matéria (‘As dúvidas sobre o passado. As perguntas sobre a trajetória de Dilma na [sic] ditadura militar que ainda estão sem resposta’), o questionamento final é: ‘Dilma se arrepende de alguma atitude tomada naquele período?’
Dito assim, a resposta nem precisaria vir da candidata à presidência da República Dilma Rousseff. Qualquer um é capaz de responder por ela: sim. A vida não tem compromisso com a verossimilhança, mas é implausível que Dilma não considere ter dado passos errados naquele período.
A pergunta que a revista insinuou é se Dilma tem hoje uma visão autocrítica de sua participação na luta armada. Teria sido uma boa pergunta. A luta armada, filha do desespero e do isolamento político, facilitou a vida da linha dura militar e civil. Tornou mais difícil a reconquista da democracia.
Na reportagem é citada uma resposta indireta de Dilma, que abriga mais de uma interpretação: ‘Lutei para ajudar o Brasil a mudar, e mudei com o Brasil’.
Mas ainda que a resposta fosse uma defesa da opção pela luta armada, Dilma e todos os seus companheiros de armas não podem ser estigmatizados por isso.
A primeira ação armada
A anistia, assim como deu proteção aos que, em nome da defesa do regime de 64, cometeram crimes capitulados no Código Penal, como torturas e assassinatos, se encarregou de restituir a todos os punidos e perseguidos pelo regime os direitos de cidadania, que se tornaram plenos após a promulgação da Constituição de 1988.
Se a Época quer rediscutir a anistia de 1979, em todos os seus aspectos, precisa publicar uma reportagem mais abrangente, que comece pelas razões e motivações que levaram a uma ação armada anterior às do grupo de Dilma e congêneres: o golpe militar de 1964 e suas consequências políticas e sociais.
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Jornalista