‘Qual é a de vocês? É só porrada atrás de porrada, dá-lhe, dá-lhe duro toda semana. Assim não vai!’, desabafava há poucos dias o porta-voz do presidente mexicano Felipe Calderón, Maximiniano Cortázar, ao repórter Daniel Liziárraga, escalado pela revista semanal Proceso para cobrir a fonte oficial. Na matéria em que relata o bate-boca, o jornalista responde e denuncia: há dez meses o setor de comunicação social de Calderón proíbe a presença de profissionais da publicação nas viagens presidenciais pelo país. A revista agora só tem acesso a eventos no Palácio de los Pinos, onde despacha o presidente, na Cidade do México, ou a atividades do governo federal nos estados vizinhos à capital.
Na verdade, o fato, rotineiro, já não espanta nem preocupa mais ninguém nos meios jornalísticos mexicanos, que escassa atenção dão ao assunto. No fundo, tratando-se de Proceso, esse é mais um obstáculo criado pelo governo para, de alguma forma, castigar e torpedear a revista em sua árdua e corajosa trajetória de 32 anos de circulação, sempre escorada na crítica áspera, inflexível, ao sistema e seus integrantes, exercida na plenitude com base em matérias investigativas densas, exaustivas, com textos quase ensaísticos, não deixando pedra sobre pedra.
A corrupção nos meios oficiais, a politicalha partidária, a cumplicidade escancarada dos cartéis do narcotráfico com os comandos policiais e até com graduadas patentes do Exército, a intromissão indevida da Igreja Católica nos assuntos de Estado, a expansão suspeita da delinqüência urbana, os tremendos estragos da poluição, as penosas relações com ‘el imperio del norte’ (os EUA), tudo isso faz parte do cardápio semanal da revista, cuja leitura não é portanto nada leve, mais inclinada a uma visão pessimista do país, com destaque para a capital, a Cidade do México, em cenários descritos e analisados, aqui e ali, num tom mais à esquerda.
Ao contrário de outras revistas semanais do gênero, como Veja e Time, por exemplo, Proceso não gasta papel nem tinta com as chamadas matérias de amenidades, muito menos com as futilidades do show business ou a escandalosa cara-de-pau dos novos ricos mexicanos. Política e economia também predominam na opinião de colunistas de prestígio, com temas ligados aos problemas nacionais mais graves.
Jornalista histórico
Até mesmo os mais rancorosos inimigos de Proceso, setores conservadores que a consideram uma publicação comunistóide, paranóica e obsessiva na escolha e tratamento dos assuntos, reconhecem o papel fundamental desempenhado pela revista nos últimos 30 anos, quando começou o processo de democratização da imprensa mexicana. Hoje, apesar das fendas ainda por fechar (jornalistas do interior do país, sobretudo na fronteira norte, que revelam os passos do narcotráfico ou suas ligações com os poderosos da região são assassinados a luz do dia, com assustadora freqüência e impunidade maior ainda), muito mais livre e aberta. Nenhum jornal de prestígio é obrigado, como acontecia antes com um simples telefonema das altas esferas na hora do fechamento, a dar na primeira página o aniversário de ‘la santa madrecita del señor presidente’.
E nesse quadro de grandes mudanças o nome maior é, como dizem os mexicanos, ‘del periodista histórico’ Julio Scherer García, que fundou a revista em novembro de l976, após ser expulso, com sua equipe, do então prestigioso jornalão Excelsior, que dirigia com vigor, competência e espírito crítico – virtudes temerárias numa época de férrea censura e dependência econômica da publicidade estatal.
Scherer desafiava o governo com a linha editorial do jornal, atrevida para os padrões daqueles tempos, e o então presidente Luís Echeverría, num enfurecimento crescente, acabou por mandar invadir a redação, de lá tirando o diretor e sua gente e no mesmo dia entregando a direção a um jornalista que até então era o homem de confiança de Scherer, por ele treinado e guindado a altos postos na redação: Regino Díaz Redondo. Este, dócil e afinado com o sistema, ali ficou muitos anos, aos poucos destruindo a credibilidade do jornal.
Apoiado por amigos e figuras da iniciativa privada, Scherer, incansável, fundou Proceso e, ao lado de outro grande colaborador, o escritor e dramaturgo Vicente Leñero, dirigiu a revista até 2002, quando, já passado dos 70 anos, aposentou-se do dia-a-dia de redação para continuar com mais calma e tempo o que já vinha fazendo com sucesso: escrever livros sobre grandes problemas mexicanos.
Ao longo desse período , a revista sofreu todo tipo de pressões e ameaças, perdeu muita publicidade oficial, foi acusada de antipatriótica por sucessivos presidentes, mas graças a uma administração austera, pobre até, e também ao interesse inusitado de novos leitores, que a compram nas bancas ou fazem assinaturas, conseguiu estabilizar seus números, não mais ficando tão vulnerável a golpes externos.
Reflexão obrigatória
Ironicamente, a saída traumática de Scherer do Excelsior não gerou somente a criação de uma boa e confiável revista semanal – alguns evidentes excessos à parte. Por causa das inevitáveis dissidências internas, foram surgindo outros jornais e revistas num movimento que não parou mais e nem pôde ser impedido, coibido ou eliminado pelo sistema, rumo à uma maior liberdade de imprensa, reforçada a partir dos anos 1990, quando também o PRI – Partido Revolucionario Institucional –, o braço forte do sistema político mexicano, entrou em declínio, perdeu muita força (e eleições), além de pesar menos, muito menos, junto aos meios de comunicação.
No visual, Proceso mudou um pouco: modernizou a paginação, ficou menos cinzenta, sai com capas mais atraentes, mas mantém a sobriedade original. No conteúdo, porém, agora sob o comando de um profissional formado na casa, Rafael Rodríguez Castañeda, não arredou pé da postura tradicional: continua feroz, irritante, tenaz, provocadora, meticulosa, chata às vezes em suas fixações e alvos preferidos, mas sempre cumprindo a obrigação básica do bom jornalismo: fazer os leitores refletirem sobre seu país e seus governantes.
******
Jornalista e escritor, ex-correspondente de Veja no México