Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Revistas na bacia das almas



– Então… quer dizer que a Newsweek está no balcão, exposta como mercadoria qualquer?


– Pois é, está à venda.


– Mas em se tratando da venda de um dos mais importantes semanários do mundo, não era o caso de se promover sua venda com um mínimo de discrição?


– É, deveria ser assim. Mas essa fase há muito foi ultrapassada. Leva quem der mais.


– Se potenciais compradores sabem das entranhas da revista, de seus prejuízos milionários seguidos, de sua contínua queda no número de assinantes… não desejarão pagar o preço das coisas que se encontram na bacia das almas?


O diálogo acima foi inventado, da primeira à última letra. Nada leva a crer que tenha ocorrido. Mas nada leva a descrer que não tenha acontecido. Li a notícia meio sobressaltado. Tinha conhecimento de suas agruras financeiras, sabia que a vaca se dirigia ao brejo. Mas não imaginava que a esta, vamos dizer, velocidade. E, óbvio, fui me inteirando da real situação aos poucos e tentando digerir cada informação, cada nota, cada cifra porque minha atenção se deslocava quase que por osmose para a situação de nossas semanais, da mais antiga – Veja – à irmã caçula, CartaCapital. E entre uma e outra, duas outras disputando basicamente os mesmos leitores da mais antiga em circulação – IstoÉ e Época.


Vejamos o tamanho do iceberg que surgiu imponente no horizonte de Newsweek.


Bandeira incendiária


Em 1961, ano em que foi comprada pelo grupo Washington Post Company, tinha uma carteira de assinantes invejável sob todos os aspectos: formidáveis 3.140.000 (vale colocar por extenso: três milhões e cento e quarenta mil assinantes).


Em 2010, Newsweek viu essa carteira emagrecer a escassos 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil). Em 49 anos a revista perdeu 1.640.000 assinantes, o que daria uma perda média anual de 33.469 assinaturas.


Em 2008 teve receita de US$ 227.400.000,00 e prejuízo de US$ 15.400.000,00. Em 2009 sua receita baixou para US$ 165.500.000,00 e seu prejuízo saltou para US$ 28.000.000,00. Seus executivos alegam que o nevoeiro que lhes impediu de avistar o iceberg tinha como característica o ‘declínio no número de anunciantes e de assinaturas’.


Não precisamos esquentar bancos de faculdade de comunicação ou de administração para saber com quantos paus se faz a canoa que transporta nossas revistas semanais. O tripé é o mesmo, e bem antes de 1933, quando Newsweek começou a circular: publicidade, assinatura, venda direta aos consumidores.


O que então há de novo? Dois eventos: a crise financeira mundial no período 2008-2009, aquela conhecida como a ‘mais mais’ desde 1929, ano em que banqueiros, acionistas majoritários, donos do capital a granel se lançavam dos edifícios e das pontes em Nova York, e, também o tsunami virtual que só faz aumentar a força da onda em altura e extensão, com o acesso de boa parte da humanidade aos portais, sites, blogs e toda aquela sedutora parafernália de texto, som e imagens que somente o ambiente web pode prover, segundo a segundo.


A crise chegou no Brasil mais como bandeira a incendiar a cena política do que como crise propriamente dita, aquela que leva bancos e conglomerados financeiros, industriais, imobiliários à quebradeira. Mas assustou, mesmo que por breve período de semanas, muitos dos anunciantes de jornais e revistas que correram rápidos ao gatilho do torniquete cancelando campanhas publicitárias, diminuindo seu tempo de vitrine, adiadas até sabe Deus quando. Sobre o assunto escrevi neste Observatório há exatos 12 meses (‘Mídia em crise: ‘A ilusão de ser informado‘, 21/4/2009).


Para fisgar a inteligência


Tomemos a título de ilustração a revista semanal de maior circulação no Brasil, Veja. Em uma edição com cerca de 116-128 páginas ao menos 34-38 páginas inteiras serão apenas publicidade, do início ao fim. Acrescente-se 11-15 páginas com propaganda cobrindo 1/3 das páginas e 4-6 páginas com 50% de seu conteúdo vendendo produtos, anunciando empreendimentos, reforçando imagem institucional de empresas.


Esse amontoado de informações pode ser mais bem apreendido da seguinte forma: são cerca de 42 páginas inteiras de publicidade por edição de Veja. E isto não inclui os cadernos publicitários que tanto engordam a revista quanto aumentam sua receita mensal. Os campeões da demanda por publicidade em Veja (e em outras similares) são o governo, os bancos, os fabricantes de carros.


É um equilíbrio frágil. Se qualquer um dos três maiores anunciantes, como acima descrito, deixar de dar as caras em uma ou duas edições da revista o baque é sentido de imediato – o mesmo baque que um assalariado sente quando vai conferir o saldo bancário e descobre que o saldo não está lá essas coisas e, o pior, que os cheques maiores não foram ainda compensados.


Na questão de assinaturas, o que posso dizer é que a situação parece estar pra lá de crítica. Promoções das revistas para angariar novos assinantes oferecem de iPods à promessa de transformar ‘seu computador em uma televisão’, de duas camisas personalizadas da seleção brasileira de futebol a assinaturas totalmente grátis de quatro outras revistas semanais editadas pelo mesmo grupo editorial, além de descontos de 20%, 22% e até 45% se o pagamento foi assim e assado.


Acho que o manancial de idéias criativas para brindar futuros assinantes está já em seus estertores. Falta apenas que esta ou aquela semanal ofereça como brinde um carro 0 km, um mês inteiramente grátis em Las Vegas, com ingressos inclusos para assistir o espetáculo ‘The Beatles – Love’ montado pelo Cirque Du Soleil, ou então o envio 100% grátis de um iPad 64 gigas, 3G. No mais, não sei mais o que poderia ser inventado para fisgar a inteligência alheia.


Da noite para o dia


Agora, meu caro leitor, imagine a sinuca de bico em que nossa grande imprensa se encontra atualmente no Brasil. Não esfriou ainda a celeuma causada pela singela declaração de Maria Judith Brito, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do grupo Folha de S.Paulo, publicada em O Globo de 18/3/2010:




‘A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação e, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo.’


Então, quem habilita-se à mesa… para apostas?


Talvez fosse mais fácil reverter o quadro se as empresas que editam nossas quatro semanais fizessem com mais foco e atenção redobrada o que lhes dizem as tais ‘qualis’, aquelas pesquisas qualitativas sobre coisas básicas como:


** O que pensa o brasileiro em 2010?


** O que ele busca encontrar em uma revista semanal de informação?


** A quantas anda nosso patrimônio de credibilidade?


** A percepção que a revista apresenta da realidade nacional e internacional tende a se aproximar da percepção que os brasileiros têm dessa realidade, ou parece mais a boca escancarada do jacaré pantaneiro?


** A interatividade da revista com os leitores é real, sincera, crível… sua seção de Cartas aos Leitores continuará publicando apenas os louvores aos da casa editorial ou abrirá espaço para opiniões minimamente divergentes?


De qualquer forma é irônico, ao menos nas últimas 48 horas, acessar o site de Veja e em sua publicidade dirigida a futuros assinantes encontrar o seguinte texto:




‘Não deixe de receber em sua casa a maior revista semanal de informação do país e a terceira maior do mundo, depois de Time e Newsweek.’


Ao menos, se a segunda maior encontra-se exposta à venda, creio eu, na tal bacia das almas, em que situação se encontra a primeira – Time – e a terceira, Veja?


Acompanhemos o desenrolar dos acontecimentos. O ponto é que uma revista não deixa de ser a ‘segunda maior do mundo’ da noite para o dia. Assim como também se pode acreditar que ninguém é infeliz da noite para o dia. Qualquer fracasso empresarial leva tempo, esforço, descaso com a inteligência alheia e, acima de tudo, muito dinheiro para ser construído.


Simples assim.


 


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Newsweek à venda – Monitor da Imprensa

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter