Publicado originalmente em objETHOS.
Confronto. Mortos. Feridos. Ira. Violência. Algumas das palavras que se repetiram nas notícias e reportagens sobre as manifestações ocorridas em diversas cidades francesas desde 17 de novembro. “Pressionado por mais um fim de semana de protestos, baderna e violência em Paris, o governo Macron se vê obrigado a ceder às reivindicações difusas dos ‘coletes amarelos’”, assim é a linha fina de texto assinado pelo colunista Helio Gurovitz no G1. Alguma surpresa?
Nas coberturas, aparentemente não. Cobrindo protestos, aqui ou alhures, manifestações europeias, tupiniquins ou árabes, o jornalismo parece focar na violência. Sempre. Sobre a “opinião” do sr Gurovitz, tampouco surpreende, pois devo dizer que vivi para ver, pessoalmente, um jornalista da grande imprensa dizer em alto e bom som “Me recuso a chamar de golpe algo que seguiu ritos jurídicos”. Isso foi na Flip, em julho deste ano, numa mesa em que teve também a participação de Pablo Ortellado, professor da Universidade de São Paulo (USP). Não espanta. Mas ouvir algo assim ao vivo é muito pior. Na mesma mesa, o sr Gurovitz afirmou que “Transporte gratuito é um privilégio”. E ouviu uma convincente explicação do sr Ortellado dizendo que não, não é. Todos pagamos para isso. Mas o neoliberalismo do jornalismo mainstream brasileiro não se convence assim tão fácil. Está aqui mais uma prova. Mas, sigamos.
Seja uma notícia sobre um buraco na rua ou em grandes manifestações, o jornalismo (o mainstream brasileiro e internacional, com algumas exceções) parece cobrir somente o resultado da ação, no máximo, a ação em si. Polícia soltando gás lacrimogêneo, manifestantes correndo, queimando carros, quebrando lojas, fazendo depredações, contagem de prejuízos. Boas imagens para foto. Boas ações para a tevê. Onde foi parar o entendimento de que o jornalismo deve prover explicações? Que deve dar o contexto? Fornecer informação de qualidade? Se manifestações de rua são semelhantes, onde está a novidade em dizer que manifestantes franceses entram em confronto com a polícia? Entraram por quê? Como? Quais as consequências?
Ok, foi dito que foi pela alta nos combustíveis. Que os franceses reclamavam do aumento do custo de vida. Por que não ir atrás de saber se as reivindicações são legítimas? Por que isso aconteceu agora? Por que o governo atendeu aos protestos? Poderá recrudescer? São perguntas óbvias em situações assim. Não é pedir um jornalismo independente, alternativo, de alto nível ou mesmo uma grande reportagem. Responder a questões básicas não é caviar. É feijão com arroz.
Mas por que a mídia mainstream se comporta assim? Por inúmeras razões. É assim que ela vem fazendo jornalismo há décadas e mudanças em certos ethos e esferas não são fáceis de implementar. Outro motivo: crise financeira, institucional, falta de profissionais, etc. Faltam jornalistas experientes que poderiam explicar situações assim. Mas seus salários são melhores, eles foram sendo limados e substituídos por jovens inexperientes com salários menores. Outra: a mídia tradicional é neoliberal. Atentem — neoliberal e não liberal, muitas vezes. Embora os ideais liberais tenham sido esgarçados, regurgitados e pervertidos pela nova direita proveniente de think tanks americanos, em curtas palavras, o neoliberalismo prega uma redução do papel do Estado nas esferas econômica e social, desconsiderando os danos que trazem para estas mesmas áreas. E o jornalismo — em especial os jornalistas, como já lembrou Kucinski, é o mais prejudicado profissionalmente por tais ideais e quem mais tende a defendê-lo, ainda assim. Também em poucas palavras, liberalismo é o conjunto de ideias e doutrinas que visam assegurar a liberdade individual no campo da política, da moral, da religião, etc., dentro da sociedade. Ou seja, o liberalismo, em princípios, não combina com conservadorismo, muito embora Kim Kataguiri e congêneres queiram convencer o Brasil do contrário.
Você se lembra quais ou quantos protestos tivemos no Brasil em 2018? Vamos lá ao que a memória e o Google me lembram: a “greve” dos caminhoneiros (esta tampouco bem explicada pelo jornalismo tradicional. Greve? Manifestação? Lockout? Vimos atos contra e a favor do presidente eleito, Jair Bolsonaro, sendo o mais famoso o “Ele não”, organizado por mulheres, mas que atraiu diferentes públicos. Tivemos também atos a favor do ex-presidente Lula, vigílias, o acampamento montado em Curitiba e uma manifestação que atraiu milhares de pessoas no 1º de maio à capital curitibana. Falei sobre isso aqui no objETHOS.
O comentário se intitulava “Acampamento pró-Lula, 1º de maio e jornalismo para a paz” e aqui chegamos a meu último ponto de por que o jornalismo cobre manifestações do jeito que cobre. Jornalistas por formação devem ter ouvido em algum momento na universidade que “jornalista é urubu, adora uma carniça, vai aonde está o sangue ou a podridão”. Aliás, creio que não é necessário estar no meio jornalístico para ouvir essas coisas. Muitos clichês se espalharam e alguns são verdadeiros. À parte o valor-notícia de uma tragédia, jornalista parece mesmo adorar a desgraça. E com isso, acaba caindo no pecado do sensacionalismo e, muitas vezes, falta de ética.
Não é preciso praticar o jornalismo para a paz nem ser de esquerda para bem explicar uma matéria. É ética, faz parte das nossas obrigações profissionais. Verdade seja dita, mesmo a grande mídia tenta contextualizar alguns fatos, haja vista o próprio G1 e The New York Times. Mas se leitores em geral apenas passam a vista em notícias, estas somente reforçarão seu pensamento estabelecido. E uma das funções do jornalismo é justamente trazer à tona o contraditório. De forma responsável, claro. Jornalismo engajado e revolucionário é bom e bem-vindo. Não sendo possível nem desejado pela imprensa tradicional liberal, esclarecimento não é luxo, é obrigação.
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Juliana Rosas é doutoranda no PPGJOR/UFSCe pesquisadora do objETHOS.
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Referência
O texto “Do discurso da ditadura à ditadura do discurso”, de Bernardo Kucinski, foi publicado pelo Le Monde Diplomatique e pode ser lido na íntegra em KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo na era virtual. Ensaios sobre o colapso da razão cínica. São Paulo: UNESP & Fundação Perseu Abramo, 2005.