Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sai o Super-Homem, entra o Super-Obama

Pode ser uma suprema coincidência? Ou por acaso há algo – ou super-herói – por trás disso?


Para entender por que agora, justo agora, nesta de todas as datas possíveis, levou-se a cabo a execução de Bin Laden, talvez seja necessário vincular sua morte repentina e desejada com dois acontecimentos aparentemente desconectados que emergiram na semana passada.


O primeiro, que causou entre fanáticos da guerra entre o bem e o mal quase tanta consternação quanto o assassinato do funesto e lúgubre chefe da al-Qaeda, embora com menos júbilo, foi o anúncio de que o Super-Homem (na revista número 900, de aniversário, que celebra suas peripécias) pensava em ir às Nações Unidas para renunciar à cidadania americana. O Homem de Aço que, desde sua aparição de estreia na revista em quadrinhos Action de junho de 1938, veste-se com as cores da bandeira ianque e atua em nome dos valores americanos, chegou a tão drástica decisão depois de sofrer a repreensão do encarregado da segurança do governo dos EUA (um homem de raça negra com cabelo crespo a Colin Powell) por ter voado até Teerã para demonstrar durante 24 horas sua solidariedade com os manifestantes da revolução verde que protestavam contra o despotismo de Ahmadinejad e seus asseclas.


O governo do Irã (na história, decerto, já que duvido que os aiatolás reais se dediquem a ler às escondidas as aventuras do Super-Homem) denunciou tal ato – por silencioso que fosse, e animado pela não violência – como uma ingerência do Grande Satã em seus assuntos internos, quase como uma declaração de guerra. Me desagradam muito os autocratas do Irã, mas não se pode criticar sua lógica ao aceitar as palavras do próprio Homem de Aço em relação a encarnar há décadas ‘truth, justice and the American way‘ (‘a verdade, a justiça e o estilo de ser/proceder dos EUA’). Assim, o Super-Homem, para poder trabalhar de agora em diante além das fronteiras nacionais e dos interesses circunstanciais de qualquer Estado, viu-se obrigado a estabelecer sua independência frente a seu país adotivo. Porque, de fato, o Super-Homem não nasceu nos Estados Unidos e sim no planeta Krypton, chegando bebê (sem passar por alfândegas nem pela imigração) a Kansas, numa diminuta nave espacial, sendo acolhido nesse território, no centro dos EUA, pelos Kent, fazendeiros que personificavam precisamente o ‘American way’. Era Ka-El. Seria Clark Kent.


Golpe de mestre


É difícil exagerar a indignação com que este ato audaz de renúncia à cidadania, esta ‘bofetada’, do Super-Homem foi recebido pelo público americano. Li (a sério) blogueiros que sugerem deportar a seu planeta de origem o novo campeão do internacionalismo (como se fosse um mexicano ‘ilegal’), e já circula uma petição para que os executivos da Time Warner (donos da empresa que comercializa o Super-Homem) forcem os autores da história a se retratarem. E múltiplos comentaristas conservadores haviam visto este insulto do super-herói como a prova definitiva da decadência do país mais poderoso da Terra: até o ídolo que representa mais universalmente nosso modo de vida está nos dando as costas!


Não sei se o presidente Obama acompanha atentamente as aventuras do Super-Homem (sabe-se que é um fã do Homem-Aranha, de cuja origem nova-iorquina não restam dúvidas), mas alguém tem que chamar sua atenção para a redução de prestígio que significa a deserção de tal titã. O que acontece, por exemplo, se o Homem de Aço, defensor dos desprotegidos, decide fechar Guantánamo ou usar seus olhos de raios X para liberar alguns Super Wikileaks, agora que já não jura lealdade à bandeira americana? O que acontece se ele se coloca ao serviço de uma potência como a China – ainda que, pensando bem, não haja muita Verdade ou Justiça naquele país, logo certamente não aceitaria esse tipo de aliança.


Em todo caso, os conselheiros de Obama têm que lhe dizer bem explicado que a deserção do Super-Homem deveria ser tratada como uma imensa crise cultural e ideológica, que inclusive pode custar ao presidente sua reeleição, posto que os republicanos já arquitetavam planos para acusá-lo de ter ‘perdido’ o Super-Homem (como se fosse Cuba ou o Vietnã).


A resposta de Obama foi genial: ao matar Bin Laden, provava que os EUA não necessitam um homem musculoso que voa para se defender dos terroristas, que para isso tem helicópteros e os Seals da Marinha e computadores e armas, como não, de aço. Um modo de restaurar a confiança nacional que andava mal e que dificilmente poderia tolerar outro dano em sua auréola.


Inimigo sinistro


Claro que antes que pudesse realizar aquela operação no Paquistão, Obama tinha que cuidar de outro assunto, um problema que o rondava há vários anos. Como ia aparecer diante do mundo e revelar o assassinato de Bin Laden em nome dos Estados Unidos se uma insólita porcentagem de seu próprio povo duvidava que o presidente fosse, de fato, americano? Como criar o contraste com o desertor Super-Homem se ao próprio Obama acusavam de ter nascido no exterior, no Quênia que, como se sabe, está muito mais longe de Kansas do que o planeta Krypton, embora os três lugares compartilhem a kafkiana letra K (em espanhol, Kenya)?


E, aí, Obama apresentou há alguns dias, sua certidão de nascimento, calando a boca daqueles que o apontavam como um alien (estranho, estrangeiro, mas alien também significa extraterrestre, outro significativo paralelo entre o presidente e o super-herói). Certamente um grupo de concidadãos seus continua acreditando que Obama não nasceu em território americano. Insistem que o documento foi falsificado e que o hospital foi subornado e que a mãe (nascida originalmente nem mais nem menos do que no Kansas!) trouxe o filho clandestinamente ao Havaí porque sabia que quarenta e tantos anos depois esse menininho mulato seria presidente. Me ocorre que a única forma de que esses recalcitrantes aceitem que Obama nasceu nos EUA seria embranquecer totalmente o rosto e toda a pele. Já não seria, então, um alien.


Mas para a maioria de seus compatriotas, Obama conseguiu em uma semana uma verdadeira e tripla proeza. Tendo provado que era um presidente legítimo, pôde, armado com sua certidão de nascimento e também com o Exército mais vigoroso do globo, eliminar o sinistro inimigo número um dos Estados Unidos. E sem que o Super-Homem interviesse.


Pela paz


E, agora, o quê?


Agora, proponho uma façanha de verdade: já que a razão pela qual Bush invadiu o Afeganistão era o apoio que os talibãs ofereceram a Bin Laden, não teria chegado o momento de retirar todas as forças americanas desse país de montanhas e guerrilhas?


Estou certo de que Super-Homem, em conjunção com as Nações Unidas e exibindo seu novo passaporte cosmopolita e global, ficaria feliz em ajudar no transporte rápido das tropas. Seria bonito lermos isso nas próximas aventuras do Homem de Aço, seria alentador que Obama e Super-Homem – ambos com suas origens no Kansas, ambos menosprezados por serem ‘estrangeiros’ – colaborassem para criar pelo menos um pequeno oásis de paz num mundo onde desafortunadamente escasseiam, no momento, tanto a verdade como a justiça.

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Escritor chileno, autor de Para ler o Pato Donald