Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Saudades da Rádio Camanducaia

Superada a fase de confrontos diretos entre representantes das entidades médicas e autoridades do Ministério da Saúde, a imprensa brasileira se dedica a acompanhar o processo de recepção e encaminhamento dos profissionais que se inscreveram no programa Mais Médicos.

Na terça-feira (3/9), os principais jornais de circulação nacional tentam antecipar um balanço que ainda não foi feito pelo Ministério da Saúde sobre a distribuição dos médicos brasileiros formados no Brasil. O destaque é para o número de ausências, embora os gestores do programa tenham informado, com antecedência, que o primeiro levantamento só seria possível depois do dia 12 deste mês.

O jornal O Estado de S. Paulo anuncia na primeira página: “Médicos não aparecem em metade das cidades paulistas”. Na página interna, tenta-se um título um pouco mais preciso: “Metade das cidades de SP tem faltas ou desistências no primeiro dia”.

No texto da reportagem, o leitor fica sabendo que não havia uma expectativa oficial para a apresentação de todos os médicos na segunda-feira (2/9), porque o início dos trabalhos fica a critério de cada prefeitura. Portanto, não se justifica o barulho em torno do número de médicos que realmente entrou em serviço, porque esse balanço ainda não foi feito e não se espera que todos comecem a trabalhar ao mesmo tempo, pois as prefeituras têm que confirmar o preenchimento de vagas só no dia 12.

O Globo vai pelo mesmo viés, num texto mais curto, afirmando que “poucos médicos comparecem no primeiro dia de trabalho”. A reportagem informa, imprecisamente, que “no dia em que 1096 profissionais brasileiros formados no País deveriam ter comparecido às recepções oficiais em unidades de saúde de seis Estados, houve muitas faltas”. Ora, se não há um balanço oficial, e se os médicos podem justificar atrasos diretamente às prefeituras, não se pode avaliar a proporção dessas ausências e dizer se houve muitas ou poucas faltas.

Na Folha de S. Paulo, o tratamento do mesmo assunto desmente tanto o Estado quanto o Globo. O título da Folha também é impreciso: “No dia da apresentação, Mais Médicos registra desistências”.

Afinal, onde está a notícia?

A reportagem da Folha diz que, “ao menos quatro médicos” (entre 1096 profissionais brasileiros selecionados, observe-se) desistiram do programa. Uma hipótese para essas desistências, não vista pela Folha mas observada pelo Estado de S. Paulo, seria “um possível boicote da classe médica”.

Se os repórteres e editores fossem mais curiosos e estivessem realmente interessados em acompanhar com alguma objetividade a implantação do programa Mais Médicos, poderiam constatar em poucos minutos que os inscritos não precisavam participar das cerimônias de recepção programadas por algumas prefeituras.

Os médicos completam o processo pelo Sistema de Gerenciamento de Programas (SGP, ver aqui), onde podem providenciar abertura de conta no Banco do Brasil, emitir passagens para seus dependentes e tomar outras medidas. A maioria (51,5%) dos 1096 médicos com diplomas de faculdades brasileiras vai para bairros periféricos das regiões metropolitanas e os demais 48,5% seguem para cidades do interior e áreas de maior vulnerabilidade social. Cerca de 40% desses profissionais vão para o Nordeste, onde é maior a carência.

Brasileiros formados no Brasil tiveram prioridade para ocupar os postos apontados na inscrição. As demais vagas estão sendo oferecidas, em seguida, aos brasileiros formados no exterior e só na terceira opção entram os estrangeiros, que vão atuar com validação profissional provisória e no atendimento básico e preventivo.

É obrigação da imprensa manter uma marcação cerrada sobre todas as iniciativas governamentais – de todas as instâncias e todos os governos. A Folha, por exemplo, mandou uma repórter a Cuba e descobriu que uma restrição do programa – de não aceitar médicos de países onde há carências maiores que as do Brasil – pode ser contornada por profissionais desses países diplomados em faculdades cubanas. A jornalista também escreveu um texto dizendo que o acordo com o governo cubano ajuda a estratégia do governo comunista de Havana para angariar simpatias pelo mundo afora.

Os jornais podem interpretar como quiserem as informações que selecionam, e isso determina sua reputação. Mas os balanços precipitados de adesão ao programa Mais Médicos lembram a “Rádio Camanducaia”, aquela emissora de ficção criada nos anos 1970 por humoristas do Show de Rádio, da rádio Jovem Pan de São Paulo: “Quando não tem notícia, a Camanducaia inventa”. 

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