Na terça-feira (4/5), fui um dos expositores do seminário 5ª Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Um pouco antes de mim, falou o jornalista Sidnei Basile, vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Abril. Em sua palestra, ele apontou alguns dos vícios mais graves da imprensa brasileira, como o de acusar alguém de crime com base em declarações de fontes que não são identificadas. Segundo Basile, o caminho para superar esses e vários outros problemas não passa por nenhuma lei, nem por atos do Estado. Passa pela autorregulação.
Cito um trecho:
‘Como satisfazer esse direito (o direito à informação, de que todo cidadão é titular) sem códigos de autorregulação que assegurem o direito de defesa de quem esteja sendo acusado? De que se ouçam as partes? De que se evitem ao máximo as acusações off the records? De que não se confunda o leitor, misturando, em um mesmo texto, opinião com notícia? De que não se obtenham notícias com o jornalista se fazendo passar por outra pessoa? De que não se vaze o conteúdo de fitas de áudio e vídeo sem antes explicar ao público os muitos cuidados que foram tomados para tentar obter as informações de muitas outras maneiras?’
De minha parte, estou de acordo com o diagnóstico. Se a imprensa quer melhorar, quer elevar sua credibilidade e atrair mais público, a autorregulação é seu próximo desafio. A razão é muito simples. A nossa experiência democrática já cuidou de demonstrar exaustivamente que leis não melhoram jornalismo nenhum. Só quem melhora a imprensa é a sociedade (em diálogo com seus jornais), independentemente do Estado.
Direito de resposta
A velha Lei de Imprensa (Lei Federal n.º 5.250, de 9 de fevereiro de 1967) foi sepultada no ano passado, finalmente. O STF declarou-a inconstitucional. O acórdão da decisão saiu no Diário de Justiça de 6 de novembro. As restrições que existiam na antiga lei não podem mais cercear a manifestação do pensamento ou o direito à informação. Nem elas nem quaisquer outras. É fato que ainda convivemos com sentenças judiciais que condenam jornais à censura prévia, como a que pesa sobre o jornal O Estado de S.Paulo, impedido de informar seu leitor sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal. Mas, à luz da decisão do Supremo, esses desvios judiciais terão de se adequar ao entendimento do STF. Em suma, a autoridade estatal já não se pode arvorar em fiscal do jornalismo, sob nenhuma alegação. Quem cuida da imprensa são a sociedade e os jornalistas. O Estado não tem mais nada que ver com isso.
Em poucas palavras: melhorar os jornais, as revistas, os sites noticiosos e os noticiários de rádio e televisão é tarefa da sociedade. Não do governo, do Judiciário ou do Legislativo. Aí é que entra a autorregulação, cujo processo é necessariamente longo. Não existe autorregulação feita de rompante. Ela passa por pactos entre o órgão de imprensa, seu público e suas fontes, o que só se desenvolve com o tempo. Esses pactos que se traduzem em códigos de ética. Sim, códigos de ética. Os códigos explicitam valores e padrões de conduta e também deixam claros os direitos da audiência e os direitos das fontes dentro daquela publicação. Por isso podem ser úteis.
É verdade que já há jornais com códigos bastante difundidos, assim como há aqueles que têm sistemas próprios para receber e tratar as queixas da sociedade. Eles saíram na frente. A partir de agora, porém, esses mecanismos terão de se aperfeiçoar rapidamente. Códigos sucintos, simples e claros servirão de orientação para os profissionais e, ao mesmo tempo, de garantia para o leitor e as fontes.
Como e em que prazo os erros detectados serão corrigidos? Por incrível que pareça, isso ainda não é claro em várias publicações brasileiras. E quanto às fontes? Caso um entrevistado sinta que sua declaração foi distorcida, a quem ele poderá recorrer? Um leitor que pretende corrigir uma informação incorreta tem garantias de que sua carta será publicada? E o direito de resposta, como fica? Alguém acusado de uma ação imprópria, sem ter sido ouvido pela reportagem, pode pedir espaço para a sua defesa? Quem é o encarregado de receber e encaminhar sua reclamação? De quem ele terá a resposta? Em quanto tempo?
Por decreto
Fiquemos atentos a essas perguntas. No próximo período, vai crescer a pressão da sociedade para que elas sejam respondidas. Os órgãos de imprensa serão chamados a divulgar suas normas internas. A cada dia mais, o público vai verificar se elas são ou não são para valer.
Há um velho axioma que nos ensina: para resolver os problemas da liberdade de imprensa, só mais liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa é também liberdade do público – liberdade para que ele discuta as notícias que recebe, para que ele cobre providências. Pela internet, pelo celular, ele já participa da confecção do noticiário com palavras, sons e imagens. Agora, vai participar também da regulação ética dos veículos. Os veículos que souberem cativar e envolver o cidadão que participa vão se destacar, vão tomar a dianteira. Quem não se mancar vai sangrar em credibilidade até definhar.
A crise da imprensa, da qual tanto se fala, não se reduz a itens como custo do papel, da tinta, da distribuição. Ela é mais profunda que a tal revolução da era digital. Ela é uma crise de envelhecimento de uma fórmula que acreditava que o monólogo seria suficiente para informar (ou doutrinar?) a sociedade. Esse envelhecimento nos levou ao casamento da irrelevância com a irresponsabilidade. Eis o que temos de mudar.
Quando autoridades estatais querem ‘melhorar’ o jornalismo por decreto, temos o liberticídio. Daqui por diante, se jornalistas continuarem a se recusar a avaliar em público o seu próprio ofício, teremos o suicídio.
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Jornalista, professor da ECA-USP