Por conta das lambanças armadas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Dia da Independência creio ser uma boa oportunidade para nós jornalistas refletirmos sobre os espaços que as falas presidenciais ocupam nos noticiários. Não é um assunto simples de se conversar. Tanto que não é a primeira vez que falo nele e creio que não será a última. Até porque vou continuar aproveitando cada oportunidade que surgir para lembrá-lo. A sua complexidade vem do fato de que há muito tempo, ainda na época que os repórteres escreviam as matérias molhando uma pena de galinha no tinteiro, alguém organizou uma escala de valores das notícias nas redações determinando que as falas de presidentes da República ocupariam lugares nobres nos noticiários. E tem sido assim desde então. Dentro desse modelo não tem como colocar em pé de página a notícia de Bolsonaro pedindo o impeachment de ministros do Superior Tribunal Federal (STF) no Senado. Ou o desfile de tanques e carros de transporte de tropas em Brasília para pressionar os parlamentares a votarem favoráveis à volta do voto impresso. Muito embora nos dois episódios houvesse consenso de que se tratava de bravatas do presidente da República para se manter nas manchetes.
O importante é as letras grandes da manchete. Para letras pequenas que contextualizam o assunto poucos dão relevância. Há muito tempo, ainda quando era parlamentar, Bolsonaro viu que era importante ser citado em letras grandes nas manchetes. Tanto que sua estratégia de se manter no noticiário é “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”. Mantendo-se nas manchetes, ele movimenta a sua base eleitoral, encurrala a oposição, que perde tempo tentando descobrir se a fala presidencial é uma bravata ou um assunto sério, e deixa os repórteres perplexos com a quantidade de fakes news incrustadas nos pronunciamentos oficiais. A pergunta que um colega me fez. Se esse modelo sempre existiu, por que agora temos que repensá-lo? Respondi que, por conta da digitalização do mundo, nos dias atuais uma notícia dá a volta nos quatro cantos do planeta em questão de segundos. E por conta dessa velocidade o leitor é soterrado por uma montanha de informações a cada minuto do dia. Pessoas como Steve Bannon, assessor do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump (republicano), perceberam essa oportunidade de ressuscitar ideologias como o fascismo e o nazismo, que tiveram o seu auge nos anos de 30 na Alemanha, de Adolfo Hitler, e na Itália, do Benito Mussolini.
Aqui entra o xis da nossa conversa. Se as redações não noticiarem nas manchetes as bravatas de Bolsonaro, é real o risco delas se tornarem verdades porque não alertamos aos leitores sobre o assunto e consequentemente não houve a mobilização da sociedade para derrubá-las. Claro, o efeito colateral disso é a história do “fala bem ou falem mal, mas falem de mim”. Tenho lido tudo que publicamos sobre a prática do jornalismo nos dias atuais perante o ataque organizado de organizações criadas por Bennon e seus seguidores ao redor do mundo, e no Brasil pelo presidente Bolsonaro e os seus três filhos parlamentares: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal de São Paulo. Geralmente as mudanças na maneira de fazer jornalismo nascem dentro das redações, na correria da cobertura dos fatos do dia a dia. E depois são analisadas e aperfeiçoadas pelos estudiosos, cientistas e professores das faculdades de jornalismo. Durante a eleição e o governo de Trump, os jornalistas americanos perceberam o problema e não conseguiram resolver. Até porque o embate com Trump acabou fazendo bem para os grandes jornais, que recuperam a sua relevância para o público e aumentaram o seu faturamento. No Brasil está acontecendo a mesma coisa. O embate da imprensa tradicional com Bolsonaro está trazendo lucros porque estacou a fuga dos assinantes e dos anúncios comerciais. Em alguns casos até aumentou o faturamento. Nos Estados Unidos, a derrota de Trump para Joe Biden (democrata) diminuiu o lucro dos grandes jornais. Tudo indica que acontecerá o mesmo no Brasil.
O lucro ou prejuízo dos jornais é outra história. O nosso problema é que a derrota de Trump e uma eventual não reeleição de Bolsonaro não mexerão na hierarquia das notícias que ocupam a manchete do jornal. Isso significa que o caminho vai continuar aberto para a eleição de outros personagens com o estilo do ex-presidente dos Estados Unidos e do atual do Brasil. E o perigo desses personagens é ressuscitar o nazismo e o fascismo. Hitler e seus aliados foram os responsáveis pela Segunda Guerra Mundial (1938 a 1945), uma carnificina que deixou 80 milhões de mortos. Durante o tempo que trabalhei em redação (1979 a 2014), nunca tive tempo de parar para pensar porque sempre pulava de um rolo para outro. Lembro-me que algumas vezes, nas mesas dos botecos, em lugares perdidos na imensidão do Brasil, durante a noite e depois de enviarmos os textos e as fotos para as redações, colegas de vários jornais do Brasil e exterior discutiam jornalismo. A conversa começava boa. Mas, à medida que as garrafas de cerveja vazias começavam a ser empilhadas na mesa, se transformava em gritaria, porque todos falavam ao mesmo tempo. Mas lá já se discutia a questão das notícias que viram manchetes. O bem maior que nós temos é a liberdade de imprensa, que deve ser reafirmada a cada matéria que publicamos. O resto vamos resolver.
Texto publicado originalmente pelo blog Histórias Mal Contadas.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.