O psiquiatra Geraldo Galender, professor na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) queixava-se, na semana passada, de sua incapacidade de se fazer entender por repórteres, de modo geral. Diante de um pequeno grupo de amigos, entre os quais jornalistas, o médico descartou uma sugestão para se submeter a um programa de media training com um diagnóstico incômodo: não é ele que não se faz entender, é a imprensa que não está procurando o entendimento.
Galender é um profissional que não faz concessões em troca de notoriedade. Estudioso e discreto, costuma dedicar tempo e paciência à análise dos fatos que são levados à sua interpretação, por jornalistas ou não. Ele acha que a imprensa brasileira está perdendo a capacidade de lidar com temas que não sejam conclusivos e com equações que permanecem abertas após o fechamento da edição.
Recentemente, segundo seu relato, deixou absolutamente aborrecido um repórter que se havia lançado ao trabalho de realizar uma pauta sobre o programa ‘Hospital-dia’, destinado a reduzir o número de internações e minimizar o isolamento de pacientes com necessidade freqüente de atendimento. Galender respondeu ao entusiasmo do jornalista com um lacônico: ‘Depende’. Daí por diante, não conseguiu criar condições para explicar que a complexidade do problema não permitia um engajamento do entrevistado na premissa da pauta. O repórter precisava voltar para a redação com uma matéria consagradora do programa ‘Hospital-dia’ e o entrevistado lhe vinha com sutilezas…
Impressionismo e Projeto Folha
A constatação do psiquiatra é um retrato típico do jornalismo ‘impressionista’, termo que o diretor da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho, costuma usar de forma pejorativa para identificar o tratamento superficial e adjetivado da notícia. A ironia da história é que, tentando sistematizar uma prática jornalística mais racional e menos intuitiva, o Projeto Folha acabou por institucionalizar uma obsessão por infográficos, quadros explicativos e rankings, sem cuidar da complexidade que caracteriza boa parte dos temas jornalísticos.
Sem atenção para a complexidade de certos assuntos, a imprensa acaba produzindo telas ainda mais grotescas do que a imagem criada por Frias. Vistos de muito perto, os elementos de ‘realidade’ que preenchem as páginas de nossos jornais e revistas parecem mesmo pontos desconexos em relação ao contexto geral.
Política e economia
No noticiário político, por exemplo, ilustrações destinadas a ‘provar’ a existência de uma relação direta entre pagamentos feitos a deputados e votações de projetos importantes no plenário da Câmara acabam semeando mais confusão, pela evidente manipulação na escolha dos projetos citados e pela omissão quanto à tendência de votação dos partidos oposicionistas em cada caso. Ou seja, nos casos em que o plenário – incluídos os líderes da oposição – votou em peso a favor de uma proposta do governo, a decisão de destacar as escolhas de parlamentares citados como beneficiários de pagamentos não é uma forma inteligente e honesta de buscar a verdade, uma vez que os votos deles não fariam diferença no resultado. Portanto, sobram elementos para se buscar outra relação entre os pagamentos feitos com dinheiro não declarado e o benefício que estaria sendo comprado com esse dinheiro.
No noticiário econômico, da mesma forma, os êxitos da política oficial são desvinculados de seus autores, descolando-se do cenário otimista aspectos pontuais que servem a manchetes negativistas. Os gráficos mostram inflação sob controle, moeda estável, juros descendentes, dívida administrada com pagamentos antecipados, queda recorde do chamado risco-país. No entanto, a impressão geral é de que caminhamos para o apocalipse. Nem estamos à beira de um abismo, nem podemos dizer, sem grande dose de cinismo, que os resultados do governo petista são uma seqüência natural das políticas do governo anterior. É preciso muita má-fé para afirmar que este governo é igual aos dois governos do PSDB.
Pura esquizofrenia, diria nosso amigo Galender, ou certa incapacidade para administrar variáveis que se apresentam como risco potencial de contradizer as premissas definidas na pauta. No fim das contas, o leitor que realmente quer se inteirar dos acontecimentos e formar uma opinião pode chegar à conclusão de que homens corruptos, ineptos, ignorantes e boçais são capazes de colocar a economia do país na trilha do desenvolvimento sustentável e alcançar os melhores indicadores das últimas décadas em aspectos fundamentais das contas públicas.
Como sabemos que não é sensato crer em tal milagre, deve-nos a imprensa um pouco mais de esforço para nos fazer compreender o que é mesmo que está acontecendo neste país desde janeiro de 2003. O cidadão precisa saber se o senhor Lula da Silva, cujo partido se enlameou num escândalo que a imprensa elevou à máxima proporção, é um inepto que deu sorte ou se realmente há em seu governo uma estratégia de políticas públicas que ninguém nos conta.
Se, de fato, como bem observa o psiquiatra Galender, o repórter vai à luta com uma pauta que não pode ser contrariada por ‘sutilezas’ e controvérsias, até mesmo nos assuntos mais amenos e pacíficos, imagine-se o grau de inflexibilidade que cerca as pautas sobre política e economia. Do jeito que as coisas nos são apresentadas, temos que aceitar o milagre, mas não podemos acreditar no santo.
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Jornalista