Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Sem novidades no front

No Levante tudo é possível: miragens podem transformar-se em realidades – como aconteceu na Tunísia e Egito – ou em auto-enganos – caso da Líbia.


A mídia internacional embarcou coletivamente num wishful thinking, imaginou que o déspota Muamar Kadafi deveria estatelar-se em 18 dias como aconteceu com Hosni Mubarak. Já se passaram 24 e a revolta, longe de chegar a Trípoli, transforma-se numa sangrenta guerra civil que praticamente dividiu o país.


A mídia cobre guerras tocada por um charme pseudo-romântico que ainda envolve as matanças autorizadas. No caso iludiu-se com a sua própria cobertura. E não por má-fé, mas porque sempre se encantou com cruzadas idealistas. Imaginou que aquela rapaziada que jamais pegou num fuzil seria capaz de enfrentar os matadores profissionais da família Gadafi.


As inéditas unanimidades contra o ditador líbio alcançadas no Conselho de Segurança e no plenário da Assembléia da ONU legitimaram as avaliações fantasiosas sopradas pelos rebeldes a respeito dos seus êxitos militares.


A ancestral divisão do país em Tripolitânia e Cirenaica nunca deixou de existir, razão pela qual os sucessos iniciais dos insurgentes levaram os desavisados a acreditar que se repetiriam no resto do país, sobretudo a oeste, onde está Trípoli. Não se repetiram.


Sem heroísmo


A Líbia não é um Estado como o Egito ou mesmo a Tunísia. Apesar do alto IDH é administrada de forma paternalista, como tribo. Não tem instituições sólidas, nunca teve. Não dispõe de uma elite militar porque há mais de quatro décadas só teve um comandante das forças armadas – Kadafi. Os próprios italianos, primeiros colonizadores modernos, só conseguiram se organizar num Estado em 1861, para 150 anos depois produzir uma aberração chamada Silvio Berlusconi.


Neste cenário fragmentado, impreciso, torna-se ainda mais difícil acompanhar uma guerra de guerrilhas, sem frentes definidas, volátil, movediça. Mais fácil foi cobrir a dramática fuga dos mais de 100 mil estrangeiros quando deixaram o país.


A campanha bélica está sendo reportada de forma dispersiva, aleatória, porque os rebeldes ainda não conseguiram aquele mínimo de organização para abastecer a legião de jornalistas que acorreram de todas as partes do mundo e precisam satisfazer o público sedento de façanhas militares.


A munição mais usada são as informações e contra-informações. Neste quesito o clã Kadafi leva alguma vantagem, embora perca de goleada no front político. Mas não há charme nem romantismo em cobrir a ONU ou a União Européia, para isto bastam os correspondentes e agências.


A sangrenta repressão adotada pelo ditador está prejudicando as demais sublevações no Oriente Médio – inspiradas e reforçadas pelos sucessos na Tunísia e Egito. Sem poder espelhar-se em novos triunfos, arrefece a cruzada libertária no Bahrein, Iêmen, Arábia Saudita e Irã. Kadafi, o caudilho ‘progressista’, ainda vai se converter em modelo do que há de mais reacionário na região.


Sem heroísmos para cantar, sem espaço (nem tempo) para analisar as implicações do que está ocorrendo e silenciada pela batucada carnavalesca, nossa mídia desperdiça diariamente preciosas oportunidades para converter o seu público em testemunha da história.


Modo de dizer


Mencionam-se os mercenários do Chade pagos com petrodólares e não lembram que não muito longe dali operava a celebrada Legião Estrangeira a serviço da França e integrada exclusivamente por mercenários.


Os filólogos das redações andaram divertindo-se com as inúmeras variações na forma de registrar o nome Kadafi, poucos se dão conta que não temos normas para grafar e/ou pronunciar os nomes estrangeiros que entram de cambulhada no noticiário.


Aquele ‘h’ na palavra Tahrir (do árabe, ‘libertação’, nome da maior praça do Cairo, base do movimento que derrubou Mubarak) não é mudo, deve ser pronunciado com um som gutural que não existe em português, inglês, alemão ou francês, mas existe em russo, hebraico e espanhol (o ‘j’). Curiosamente, os jornais espanhóis não designam o logradouro cairota de Tajrir: mantém o ‘h’ sem saber o que fazer com ele.


O mesmo acontece com o minúsculo Bahrein. Nossos locutores evitam o som rascante do ‘h’ (para não arranhar as preciosas gargantas) e com isso induzem os redatores a escrever com erros. Principalmente na internet.


Quando não há novidades no front, melhor lembrar os mortos.