Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ser ou não ser imparcial no jornalismo? Uma velha dúvida numa nova realidade

Foto: Kstudio/Freepik

Quanto mais rapidamente os jornalistas abandonarem as regras atuais sobre imparcialidade, mais efetiva poderá vir a ser a forma de abordar uma realidade, que a cada dia se mostra mais desafiadoramente complexa.

Parece uma afirmação radical e despropositada, mas, na verdade, o que ela sugere é uma atualização na teoria e na aplicação prática dos princípios da imparcialidade na produção de material jornalístico. A preocupação é colocar estes dois itens da atividade profissional dentro de uma nova perspectiva.

A imparcialidade (1) como princípio profissional foi incorporada à atividade jornalística desde meados do século XIX, quando chegou ao fim a era da chamada “imprensa partidária”, nos Estados Unidos. A dependência quase total de financiamentos fornecidos por partidos contaminou todo o noticiário político, alcançando um nível tal, que acabou levando o público a não confiar mais nos jornais e programas jornalísticos radiofônicos.

A norma da imparcialidade, como tábua de salvação da imprensa, foi adotada nos Estados Unidos, a partir das primeiras décadas do século XX (2) como um recurso para neutralizar a perda de receitas, causada pelo ceticismo do público diante da aliança entre políticos inescrupulosos e os jornais norte-americanos da época.

Após pouco mais de um século de vigência quase obrigatória nos manuais de redação, a teoria e a prática da imparcialidade e neutralidade sofrem hoje o impacto das mudanças provocadas pela internet e a digitalização no exercício do jornalismo. Ambas mudaram radicalmente a abordagem da realidade por causa da avalanche informativa que multiplicou exponencialmente o número de visões sobre um mesmo fato, dado, evento.

As rotinas de cobertura jornalística digital começam a se dar conta da impossibilidade de uma imparcialidade absoluta porque a produção de uma notícia jornalística implica a necessidade de levar em conta um número variável de visões diferentes de um mesmo dado, fato ou evento. Estamos entrando na era da complexidade informativa que aos poucos vai substituindo a forma de perceber o mundo a partir de apenas duas perspectivas (bom ou mau, certo ou errado, grande ou pequeno, branco ou preto etc.)

O caos noticioso

A cobertura jornalística da atual crise entre poderes em Brasília fornece um exemplo claro das dificuldades enfrentadas por repórteres e comentaristas, autônomos ou contratados por empresas, em lidar com a complexidade da manipulação da informação por políticos, funcionários públicos, empresários e lobistas. Como a dicotomia (divisão do mundo em apenas duas visões) ainda prevalece na maioria das redações, o noticiário publicado acaba transmitindo aos leitores, ouvintes e telespectadores uma verdadeira colcha de retalhos noticiosos, gerando confusão e desorientação.

A complexidade do mundo que os jornalistas devem apresentar ao seu público ficou ainda maior depois do surgimento das notícias falsas (fake news) e das chamadas realidades paralelas. Ambos os fenômenos se alimentam da expansão da área cinzenta entre conceitos extremos como verdade ou mentira. A notícia falsa é produzida para parecer verdadeira, a típica meia verdade.

As realidades paralelas são um conglomerado de ideias, desejos e fatos vividos como se fossem verdadeiros e dão origem a comportamentos e discursos reais. Este tipo de atitude começa a contagiar grupos cada vez maiores de pessoas que passam a viver numa espécie de bolha social e cultural, alimentada pelo negacionismo daqueles que não conseguem mais entender o mundo em que vivemos. Exemplo disto pode ser visto em Brasília, no dia 6 de setembro quando caminhoneiros bolsonaristas que passaram a agir como se o estado de sítio tivesse sido decretado no país.

As regras e rotinas do jornalismo convencional já não conseguem mais dar ao profissional uma orientação segura sobre como cobrir situações complexas como as que se multiplicam diariamente em todas as áreas do noticiário de atualidades. Se já era difícil ouvir dois lados antes da chegada da internet, agora virou um dilema ser imparcial, quando se está submetido a um bombardeio de dados e fatos contraditórios e cuja autenticidade precisa ser verificada. Ou seja, não privilegiar nenhum dos diversos protagonistas envolvidos na questão.

O dilema do tempo

Manter, hoje, a norma da imparcialidade significa ter que dedicar um tempo considerável para ouvir e entender todas as partes envolvidas num conflito, o que inevitavelmente acaba aumentando a carga de trabalho o profissional e um atraso na divulgação do material. Checar a veracidade de um dado pode exigir numerosas verificações sem as quais a credibilidade da notícia fica ameaçada e, consequentemente, a confiança do leitor, ouvinte ou telespectador.

Processo ainda mais complicado é a maneira como os profissionais lidam com as realidades paralelas porque as pessoas acabam criando os seus próprios mundos e sua própria lógica para atitudes e justificativas para ocultar a incapacidade de lidar com realidades complexas. O repórter acaba sendo colocado diante da escolha entre rejeitar em bloco o discurso da realidade paralela vivenciada pelo entrevistado, deixando de ser imparcial, ou terá que buscar as razões que motivaram o surgimento desta bolha social, o que inevitavelmente alongará o tempo gasto na apuração.

Há também o desafio da escolha as palavras e do estilo narrativo já que ambos condicionam o posicionamento das pessoas. O projeto Trusting News (Notícias Confiáveis) mostrou como as manchetes e o uso de termos sem a devida contextualização, podem levar o público a questionar a imparcialidade de reportagens, análises e notícias jornalísticas. A organização criou inclusive um fórum de debates entre profissionais e amadores no jornalismo visando ajudá-los a descobrir o caminho das pedras nesta era da complexidade informativa. Não há uma solução geral para a atualização do princípio da imparcialidade, bem como das regras e comportamentos nela baseados. Novas normas e rotinas profissionais terão que ser criadas a partir dos erros e acertos dos profissionais no trato da notícia sem a clássica e hoje insuficiente preocupação em ouvir duas versões antagônicas. Há muitos lados numa notícia, o que implica ouvir muitos lados.

A grande mudança que está acontecendo aos poucos é a necessidade de alterar os tempos de produção das notícias. As exigências de deadlines (prazos) terão que ser adaptadas à natureza dos conteúdos a serem publicados, dependendo de sua complexidade informativa. Isto vai mexer muito com a estrutura de produção de notícias tanto nas redações como na atividade autônoma.

  1. Imparcialidade, isenção e neutralidade são expressões que tendem a ser tratadas como sinônimos, mas há uma importante diferença entre elas. A isenção ou neutralidade, significa que o indivíduo ou instituição colocam-se fora do problema em questão. Já a imparcialidade implica estar dentro do problema, mas sem tomar partido de um dos lados em conflito. Mais detalhes em Media Impartiality e em Diferença entre Imparcialidade e Neutralidade
  2. A Fairness Doctrine (Doutrina da Imparcialidade) criada pela Comissão Federal de Comunicações dos EUA (FCC) tornou-se obrigatória na TV norte-americana em 1949, mas o debate começou em 1938.

Texto publicado originalmente na plataforma Medium.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.