Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Será a mídia o primeiro poder?

De antemão, tenho ciência do quanto o teor do presente artigo possa despertar a fúria de visões antagonistas. Nada contra. Afinal, se é prazeroso o aplauso majoritário, igualmente para outros não é menos estimulante provocar turbulências em setores cujas práticas se alimentam da lógica fechada, também conhecida como ‘razão dogmática’. Firmada a premissa, vamos ao enfrentamento do tema sugerido.

A julgar pelo montante de textos (entre artigos e comentários) que, há algum tempo, ocupa espaços deste Observatório, sou levado a crer que a máxima centrada no reconhecimento de ser a mídia o quarto poder é falsa. A rigor, ao menos na realidade brasileira, a mídia ocupa o primeiro poder.

Se é verdade que a mídia brasileira tem, por todos os métodos de manipulação, tentado (subliminar ou explicitamente) detonar o atual governo, há de, primeiramente, concluir-se que seu poder é muito limitado. A resposta dada pela população nas urnas, de modo expressivamente majoritário, deixa claro que a influência das estratégias tendenciosas da mídia no imaginário social não faz efeito. Se, por acaso, a mídia blindava o governo de FHC (deixo claro que dele nunca fui eleitor), a conclusão é também a de que a mídia não pôde evitar a vitória de seu opositor.

Amigos ‘aloprados’

O caminho mais adequado para uma análise desapaixonada, ou seja, liberta de qualquer sintoma associado à ‘cegueira hermenêutica’, indica a rememoração de fatos. Então vamos a eles.

Quem trouxe, em fevereiro de 2004, o episódio ‘Waldomiro Diniz’? Alguém filmou fato explícito de prática ilegal e entregou a um veículo de comunicação. Que órgão de comunicação não daria visibilidade ao fato? Em outro momento, um presidente de partido que integrava a base de sustentação do governo procura uma jornalista e lhe faz um depoimento-bomba a respeito de práticas ilegais, envolvendo altas cifras. Que veículo, no mundo, abortaria a publicação da matéria? Como conseqüência, alguém filma cena de suborno (episódio dos Correios) e envia a setores de comunicação. Em que lugar do mundo tal fato deixaria de tornar-se público?

Em seguida, CPIs foram instauradas, com transmissão direta. Nada menos que o publicitário-marqueteiro, responsável pela campanha eleitoral daquele que se tornaria presidente da República, afirma haver recebido expressiva soma de dinheiro, com depósito em conta no exterior. Que restaria à mídia fazer? Fingir que nada foi declarado? Na campanha para a reeleição, surge (e não foi por ‘furo’ de nenhum repórter) o fato do ‘dossiê dos recursos de campanha’, envolvendo a rede de amigos do presidente aos quais o próprio chamou de ‘aloprados’. Em que lugar do mundo, a mídia não tornaria público?

Clinton no Salão Oval

Apesar de todas a cobertura acerca dos fatos (e não foram poucos), mesmo admitindo que teriam sido utilizadas todas as estratégias de efeito subliminar, eis que vingou o segundo mandato, com igual êxito ao que fora alcançado no primeiro. Assegurada a legítima vitória, durante longos seis meses, o país ficou entregue a ‘ministérios virtuais’, aguardando a nova composição. Em qualquer lugar do mundo, a mídia teria perdido o princípio da tolerância. Todavia, o período foi atravessado em regime de ‘paciência franciscana’.

Quando tudo parecia contornado, irrompe a crise do ‘apagão aéreo’, do qual centenas de famílias brasileiras tiveram de prantear seus mortos, em função de dois acidentes com inúmeras características que apontam para negligência, disputa por lucros a qualquer preço, inépcia da parte de agentes fiscalizadores etc. Terão sido os acidentes patrocinados por setores da mídia?

Agora, um salto para trás. Quem iniciou a demolição do governo Collor? Foi a mídia? Que veículo recusaria publicar o depoimento-confissão de, nada menos, um irmão do presidente? A partir da publicação da entrevista, uma avalanche de denúncias e de fatos trouxe à tona o que se escondia nas entranhas do Planalto.

Mais recentemente, o STF no qual há inúmeros ministros nomeados pelo atual governo, agasalha a denúncia do procurador-geral da República, também nomeado pelo atual governo. A mídia deu o destaque que o fato merecia. Igualmente a mídia, nos EUA, deu ampla cobertura ao episódio no qual o presidente Clinton era alvo de denúncias quanto a práticas sexuais no Salão Oval da Casa Branca.

Palavras conclusivas

É compreensível que, no campo da política, paixões exacerbem posições (contra e a favor). Todavia, não é menos desejável que, em nome da saúde social, os setores exacerbados (obviamente, excluídos aqueles que, em algum nível, são beneficiados direta ou indiretamente) façam um exercício de autocontrole, evitando-se, com atos e discursos contaminados pela ira, a potencialização de ânimos cujo desfecho sempre traz esgarçamento societário e indução à violência. Para finalizar, a mídia noticiou o tal movimento ‘Cansei’. E daí? Pegou?

Que a mídia não é (e nunca foi) inocente, todos sabemos. Afinal, certa feita, escrevi que ‘a linguagem nunca é inocente’. Mídia é essencialmente linguagem; logo, não há nenhuma novidade quanto a isso. Contudo, a sentença não quer dizer que a mídia esteja sempre predisposta a subterfúgios e a práticas tendenciosas e desonestas. Evitar paranóia é sempre cuidado salutar.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)