Provavelmente, é redundância voltar ao assunto da eventual censura ao Estadão, mas acredito que é justamente ir contra a mesma contribuir – se possível – com mais opiniões sobre o assunto.
Evidentemente que qualquer censura é repugnante às sociedades ditas de direito e letradas, democracias bem postas. Gostando-se ou não dos inúmeros meandros do american way of life, é difícil dizer que os EUA não são um país democrático mesmo que as eleições presidenciais no final das contas sejam indiretas, que haja uma religiosidade tal que beira a teocracia, a existência da pena de morte e por aí afora. Mas a celebrada primeira emenda da Constituição americana é a que garante a liberdade de expressão; não por acaso, a Constituição sueca caracteriza como primazia de sua democracia, antes mesmo das chamadas liberdades individuais, a mesma liberdade de expressão.
Como comentário paralelo, volta e meia alguém compara alguma coisa, e em geral essa alguma coisa é o Brasil, com a Escandinávia. Mesmo esse pretenso paraíso das luzes do Norte merece correção: os habitantes daquela região se enquadravam perfeitamente na definição dos arianos ditadas pelos nazistas e é bem provável que se esse abjeto movimento não tivesse aparecido na Alemanha, poderia ter irrompido para os lados de Estocolmo ou Oslo. Lá pululam movimentos neonazistas e nos tempos da guerra fria as esquerdas eram severamente vigiadas, embora chegassem a ser eleitos várias vezes governos social-democratas por aquelas bandas.
Sigilo processual
Uma curiosidade: em meados dos anos 1980, quando era membro ativo da Anistia Internacional, fiquei surpreso com um relatório anual da entidade sobre direitos humanos no mundo que trazia um caso de violação dos mesmos na Suécia: em plena ditadura de Pinochet, no Chile, um grupo de prisioneiros de consciência (ou políticos, mas usei o jargão próprio da AI), foi colocado à força em um avião, imobilizado e exilado (será esse o termo técnico mais correto?) – e o aeroplano, sabe-se lá qual a razão, pousou em Estocolmo. A polícia local entrou no aparelho, verificou o que ocorria e comunicou aos superiores o que acontecia. Os avançados suecos acolheram como refugiados os chilenos? Não: impediram o desembarque dos mesmos e mandaram a aeronave decolar. Os exilados começaram a se agitar e a polícia sueca simplesmente aplicou sedativos em todos, algemou os mesmos e fez o piloto dar o fora dali. O avião, ao que consta, voltou ao Chile e nunca mais se ouviu falar naquelas pessoas…
Seja como for, um exemplo sueco perde-se ante a montanha de iniqüidades que ocorrem em todo o mundo, e nosso país não escapa, evidentemente, de ser apontado como violador de direitos humanos. Dentre esses, também é notória a censura e a limitação à liberdade de expressão, dentro do conceito no qual está a de imprensa.
Eis que o veterano jornal paulista e paulistano reclama de censura a ele imposta pela justiça do DF, após as conhecidas matérias sobre a família Sarney. Quase tudo que poderia ser dito a respeito do evento já o foi no próprio Observatório da Imprensa, por seus colunistas e leitores, destacando-se o texto do professor Dalmo de Abreu Dallari e a publicação de material que remete aos autos do processo – concordo com os que apontaram que aquela não é a expressão fiel dos mesmos, mas um ofício. Por outro lado, o processo corre em segredo de justiça e o OI, ao não publicar a íntegra do processo, pareceu concordar inteiramente com a tese de guarda do sigilo processual.
Ordem de juiz não se questiona
Sim, este é o centro da questão: liberdade de expressão ou de imprensa não é irrestrita. Os códigos legais dos países democráticos devem inserir algum tipo de prevenção contra abusos, pois a ninguém é lícito imaginar que jornalistas possam pertencer a alguma categoria sacrossanta que jamais irá errar ou se corromper. Isso vale para médicos, advogados, policiais, babás ou qualquer categoria profissional ou conjunto de seres humanos; sim, nós não somos perfeitos. É redundante novamente, mas o caso da Escola Base e outros sempre servem de alerta. O erro é engessar as opiniões em leis pouco críveis, como a recentemente enterrada Lei de Imprensa patrícia dos tempos do regime militar, ou criar códigos de ética e conselhos e sanções profissionais – o jornalismo jamais poderá ser profissão regulamentada como outras, justamente para preservar sua independência. Não por outra razão, foi correta a gritaria contra o Conselho Federal de Jornalismo. Bastam regras gerais criminais e cíveis para enquadrar eventuais extravagâncias que a liberdade será preservada. Para ficar mais perto do mundo perfeito, ajudaria muito se a justiça também fosse mais ágil.
Dentro desses mesmos princípios gerais de sanidade legal, existe o segredo de justiça. Certo, a cultura de cada povo pode fazer essa norma variar ou quase inexistir: em lugares aonde é importante a figura do juiz leigo, ou o júri, utilizado para quase tudo no sistema judicial anglo-saxão, notadamente o estadunidense, o segredo como aplicado por aqui fica bizarro. Mas como em nosso Brasil quase sempre as deliberações são tomadas pelos juízes togados, ou profissionais, exceção feita aos homicídios dolosos, que vão a júri, e mesmo que seja muitas vezes abusivamente utilizado, é amplo o direito aos recursos nestas plagas – em tese, um indivíduo condenado em primeira instância pode ser considerado inocente, até que passe o prazo prescricional ou haja a manifestação final do STJ ou do STF.
Dessa forma, uma vez decretado o sigilo em um processo pelo juiz que preside o mesmo, todos são obrigados a cumpri-lo. Fazer o contrário é ir contra a lei, seja quem for que dê a público o que ocorre em tais autos, o próprio juiz, o promotor, advogados, as partes ou a imprensa. E foi o que ocorreu no caso Sarney-Estadão: os autos estavam sob sigilo e sua publicação não poderia ocorrer. Correta a posição do magistrado que ordenou o mesmo? Há sérias razões para duvidar dessa medida, mas como ainda estamos – e que assim fiquemos! – em vigência de uma democracia, se alguém discordar de uma medida judicial, que recorra a uma instância superior para reformar a mesma, ou ao Conselho Nacional de Justiça. Como vários já assinalaram, o próprio Estadão, em várias ocasiões, postou em seus editoriais a velhíssima máxima de que ordem de juiz não se questiona, e sim, se obedece. Ipso facto…
Processo fica sob guarda do conselho
Talvez para reforçar essa impressão, uma historinha real de uns quinze anos atrás. O Cremesp funciona de várias formas como a Justiça; pode ser considerado uma instância, ou poder paralelo, que detém a propriedade de poder julgar e apenar os médicos que violem o código de ética da categoria, da mesma forma que OAB, Crea e assemelhados. Das cinco penas previstas na lei federal apropriada, pode haver a advertência e a censura sigilosas. As demais são a censura pública, a suspensão e a cassação definitiva do exercício profissional. A própria lei determina que advertência e uma das formas de censura são secretas: logo,concordando-se ou não com a antiquada lei de 1957, não se pode dar publicidade às mesmas. As demais, embora públicas, também sofrem uma situação peculiar: se um médico é cassado, por exemplo, ele será considerado inocente – e conseqüentemente a pena ficará secreta – até o julgamento final pela instância superior, no caso o Conselho Federal de Medicina. As interdições cautelares poderiam ser interpretadas da mesma maneira, mas seria risível e incongruente manter oculta uma interdição, pois claro que a mesma não teria efeito.
Mas o segredo não é apenas corporativo: um dos pilares da ética médica, desde o tempo de Hipócrates, é o sigilo na relação entre o profissional e o paciente. Essa norma é tão rígida que só pode ser quebrada por determinação do próprio doente ou por seu responsável legal, caso se encontre sem condições de expressar sua vontade. Ainda assim, há limitações para um terceiro quebrar esse segredo. A propósito, a nossa jurisprudência não permite que nem mesmo um juiz de direito obrigue um médico a dar o diagnóstico de um criminoso, por exemplo. Em casos especiais isso pode ser feito, mas após detalhada análise do colegiado do conselho de medicina. Eu mesmo já fui acusado de desobedecer ordens judiciais por não entregar autos de alguns processos disciplinares; mas a intervenção da conveniente explicação por parte dos advogados do CRM, ou em situações extremas a interposição de recurso à autoridade judicial superior, sanaram qualquer punição.
Voltando ao tema central acima colocado, não é ao médico, e sim, ao paciente, que se quer proteger. Evidentemente, se o próprio está processando um médico civilmente e também no CRM, é do interesse do mesmo a publicidade do ocorrido, e não compete ao órgão de classe ‘esconder’ os autos. Mas se não houver manifestação em contrário, um processo disciplinar ficará em segredo, sob a guarda do conselho.
‘Abrimos a Caixa Preta do CRM’
Eis que um dia aparece repórter do Jornal da Tarde, sabidamente do grupo do Estado de São Paulo, na sede do Cremesp para entrevistar seu então presidente. O jornalista fica umas duas horas conversando, pergunta uma série de coisas sobre o funcionamento do conselho e, ao final, questiona se poderia ter acesso a alguns processos, para ilustrar sua matéria. É informado de que isso não seria possível, nem mesmo com autorização do presidente do órgão – caso o mesmo viesse a autorizar tal medida, poderia ser afastado de suas funções pela própria plenária do CRM e/ou pelo CFM e até ser processado por algum paciente cujo nome constasse de algum auto da instituição, ou mesmo pelo Ministério Público.
Pois bem, passados alguns dias, alguns funcionários da seção de processos procuram a diretoria do Cremesp, da qual eu fazia parte, alarmados com o fato de que o referido repórter havia permanecido mais de um dia na seção, folheando vários processos. Resumidamente, uma sindicância interna logo verificou que dois funcionários do conselho, com cargos de chefia, haviam autorizado o jornalista. Ninguém até hoje sabe exatamente a razão dos mesmos terem corrido tal risco, mas foram demitidos por justa causa. E quando se telefonou para o profissional de imprensa pedindo a ele cautela com os dados que possuía, o mesmo informou que iria publicar uma série de reportagens durante uma semana inteira no JT com o nome de ‘Abrimos a Caixa Preta do CRM’.
Ante essa situação, marcamos uma reunião com o diretor de redação do jornal, na verdade seu substituto, pois o titular, da família Mesquita, estava fora do país. Comparecemos eu, o presidente do CRM e um dos advogados.
O velho segredo de justiça
Nossa recepção foi arrogante. Tivemos que ouvir coisas como ‘não tive medo dos militares nem do Collor, vocês acham que vou ter medo do CRM?’ Após vários e aflitivos minutos, já com o jornalista mais calmo (até serviu um cafezinho, essa espécie mais veloz de pizza brasileira), dissemos que não estávamos ali para censurar ninguém, muito menos para dizer ao jornal o que fazer. Contudo, sugerimos insistentemente que ele, caso fosse mesmo publicar as tais matérias, colocasse o nome dos pacientes com iniciais ou disfarçado de algum outro modo, caso contrário não seria apenas o Cremesp que poderia ser acionado, mas o próprio Jornal da Tarde. E aconselhamos que ele ouvisse o jurídico da empresa.
Efetivamente as matérias saíram: felizmente fomos ouvidos, e os nomes de pacientes foram omitidos. Fato curioso foi que tal série abriu uma segunda-feira como manchete principal do jornal e terminou melancolicamente em uma perdida página interna de algum caderno do sábado. Até onde pudemos saber, ninguém soube das reportagens ou da série, ninguém reclamou. Não parece sintomático que a mesma empresa que clama aos céus pelo fim da censura nesse caso Sarney tenha recorrido a algum estratagema obscuro para obter informações sigilosas para uma série de reportagens que ao que tudo indica não interessou a ninguém?
Dessa maneira, respeito o Estadão/JT dos tempos idos em que publicava receitas e Camões quando sob real censura ditatorial. Para regozijo de todos, esse período passou – mas parece que a Osesp está sofrendo de algum saudosismo com ares de péssimo marketing. Com a devida vênia dos respeitáveis Mesquita, não há censura, apenas o velho segredo de justiça, com certeza muito bem ensinado nas Arcadas da São Francisco, faculdade que a família de jornalistas tanto diz prezar.
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Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro e ex-diretor do departamento jurídico do Cremesp, SP