Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Só a qualidade garante a sobrevivência dos jornais

Matías Molina é autor do livro Os melhores jornais do mundo uma visão da imprensa internacional, uma publicação do jornal Valor Econômico – através da editora Globo e em parceria com a Companhia da Notícia [ver aqui]. Molina é jornalista, nasceu na Espanha, vive no Brasil há mais de cinqüenta anos. Ele é tido como formador de praticamente duas gerações de jornalistas na área de Economia. Carrega ainda um forte sotaque.


Estudou História na Universidade de São Paulo, mas sempre atuou como jornalista. Foi redator da revista de negócios Direção e da Folha de S.Paulo. A partir de 1965 editou as revistas técnicas da Editora Abril e foi o primeiro editor de Exame. Em 1973 voltou à Folha a convite de Cláudio Abramo para atuar no projeto de renovação do jornal. Depois trabalhou na Gazeta Mercantil, da qual foi correspondente em Londres. Entre 2005 e 2006 publicou no Valor Econômico a série de reportagens especiais que são o embrião de Os melhores jornais do mundo. A seguir, sua entrevista – originalmente veiculada no programa radiofônico deste Observatório, de 15 a 18/1/2008.


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Vamos começar com uma anedota a seu respeito. Um colega nosso na Folha, uma vez, saindo de uma reunião na sua sala, disse o seguinte: ‘Acabei de falar com Molina, não entendi nada do que ele disse, mas acho que entendi tudo que ele queria dizer’.


Matías Molina – Parabéns, porque nem todos entendiam o que eu queria dizer! Quando faço palestras, com alguma freqüência, sempre faço uma advertência ao público: digo que não vai ter tradução simultânea. Então que se preparem como ouvintes do programa, do Observatório da Imprensa: não vai ter tradução simultânea, lamento muito.


Você é responsável pela formação por pelo menos duas gerações de jornalistas, na área de Economia e Negócios. Durante vinte ou quase trinta anos, você deve ter sido um mestre para muitos profissionais. Como vê hoje a cobertura dos fatos econômicos e de negócios no Brasil?


M.M. – Eu acho que os jornais econômicos têm uma função importante a cumprir – e está sendo cumprida por alguns deles. Com relação à formação de jornalistas, que você mencionou, eu observo que, com algumas exceções muito raras, não há preocupação de formar jornalistas, de treinar; com freqüência, se vê o trainee como uma mão-de-obra barata, o que é um erro. Porque um trainee, para ser bem aproveitado, é mão-de-obra muito cara. Para contratar um trainee você entrevista muitas pessoas, escolhe algumas, tem que se dedicar a elas. O tempo que exige a formação do trainee é muito grande, de dedicação. É agradável treinar pessoas, muito agradável, muito revigorante. Só que dá trabalho. Você não pode mandar um trainee sozinho, no começo, fazer uma reportagem – tem que acompanhar o repórter mais velho, tem que ver como que o cara faz, tem que voltar, tem que escrever. Treinar dá trabalho. Como isso dá trabalho, a tendência é cada vez menos se dedicar aos trainees. Isso é um problema sério do país, no longo prazo.


E como é que é feita a renovação? Os jornalistas agora são autodidatas?


M.M. – Há também jornalistas jovens bons, bem preparados. Na minha visão, para ser um jornalista tem que ter cultura, muita cultura. E tem que gostar muito de ler e de escrever. Jornalista econômico para mim não existe – o substantivo é jornalista, econômico é adjetivo. O que importa é ser jornalista. Um bom jornalista, com treino, pode ser um jornalista econômico. Mas se a pessoa entende de economia e não for jornalista, não adianta insistir porque não vai a lugar nenhum. Por isso, um bom jornalista pode ir para a área de economia, pode ir para a área de política ou de esporte, se for bom jornalista, ele vai se especializar. Mas eu insisto, o substantivo é jornalista, econômico é o adjetivo.


Uma das dificuldades da observação de imprensa é a classificação dos veículos. Que critérios você utilizou para selecionar os veículos que você analisa no seu livro? Reputação, tempo de vida, qualidade editorial? Quanto de subjetividade existe nessa seleção?


M.M. – Está misturado. Você não pode separar uma coisa da outra. Há um critério objetivo, sobre qualidade de texto, sobre o tipo de informação; ao mesmo tempo, há outro critério que é o de reputação – você não pode pensar que não há uma reputação do jornal, que às vezes foi feita ao longo de um trabalho sério. A minha idéia de fazer este livro foi trazer ao Brasil algumas informações sobre os principais jornais do mundo. Permitir que algumas pessoas, que não os conheciam, comecem ter contato, a ter o gosto sobre estes jornais. Essa é a idéia básica do livro – não tem outra intenção senão essa.


A impressão que se tem ao se ler Os melhores jornais do mundo é que os jornais estão sempre em transição. É assim mesmo?


M.M. – Em geral, todo período é de transição. Uma transição sobre a forma e uma transição na qual a forma de fazer o jornal vai afetar muito o conteúdo. Há uma transição do jornalismo de jornal, escrito e impresso em papel, para um jornalismo que poderá ser uma mistura do jornalismo impresso e do jornalismo audiovisual e de internet. Eu não acredito que os jornais impressos vão desaparecer, mas acredito que a internet propicia uma incrível condição de você distribuir as informações para um público que antes não teria acesso se o jornal fosse simplesmente impresso. Vou explicar um pouco mais. Há alguns anos, o New York Times fez uma pesquisa e concluiu que talvez uns quarenta ou cinqüenta milhões de pessoas no mundo teriam condições – pela sua formação, pela sua profissão, pela sua formação intelectual, por seus interesses – de ler o New York Times. Só que estas pessoas não poderiam receber o jornal diariamente, de manhã, em sua casa. Alguns estariam na Coréia, outros na China, outros no Afeganistão, outros no Chile, outros nos EUA. A internet permite que todas estas pessoas tenham acesso a este jornal. Esta é a grande vantagem da internet, aliás, uma das grandes vantagens da internet.


A internet então é um risco e uma oportunidade?


M.M. – A grande oportunidade é a oportunidade da difusão. Nunca os jornais do mundo tiveram tanta difusão, tanta leitura, como hoje, se você considerar o jornal impresso e o jornal de internet. O risco está na questão econômica. Por um lado, a internet permite que você distribua o jornal sem os custos fixos que tem – de papel, de impressão, da distribuição –, que no New York Times, por exemplo, chega a quase oitocentos milhões de dólares, talvez seja perto de um bilhão por ano. Mas a economia da internet não permite que os jornais tenham uma receita que substitua a receita da venda de assinaturas, a venda em banca e da publicidade. E a receita pela venda de conteúdo é muito baixa. E a receita de publicidade da internet é muito inferior à receita de publicidade no papel.


Você falava sobre a crise criada pelo advento das novas tecnologias. Mas há também uma questão de mudança no modelo de negócio que afeta as empresas de comunicação, não é verdade?


M.M. – O que houve é que a partir dos anos 1960 e 70 as empresas todas nos EUA começaram a abrir o capital. Uma empresa com capital em bolsa, o modelo tem várias características. Uma delas é que a empresa é obrigada a se racionalizar, a ficar mais enxuta, é obrigada a ser mais profissional. O que é bom para a empresa, porque se organiza de maneira empresarial adequada. Tem um lado muito negativo, que é: o investidor em bolsa, principalmente os grandes fundos de pensão, fundos de investimento, eles querem retorno sobre o investimento. Então, quando há uma crise econômica onde a economia tem um baque, a pressão para as empresas jornalísticas é que continuem mantendo a elevadíssima margem de lucro ou até aumentado. Para isso, o que fazem? Cortam despesas. Cortam pessoal, cortam pessoal de qualidade (pessoal que é caro), cortam correspondentes (o que é muito fácil).


Bom, isso acontece praticamente a cada seis meses nos principais jornais do Brasil. E qual a conseqüência disso para o longo prazo?


M.M. – A longo prazo significa que há um declínio de qualidade e um declínio até da própria empresa jornalística. Geralmente, como você disse, é um modelo que foi muito negativo para as empresas.


Esse modelo de gestão, pelo corte de custos em detrimento da qualidade, pode afetar o futuro dos jornais?


M.M. – Isso está afetando muito a qualidade dos jornais e poderá afetar também o seu futuro.


Você cita também no seu livro o envolvimento de outros interesses de negócio com o jornalismo. Você cita até o caso do jornal espanhol El País. Como isso pode afetar a reputação de um jornal?


M.M. – Quando um jornal pertence a um grande grupo econômico, a cobertura dos negócios é muito delicada. No caso do El País, mencionei que o grupo Prisa entrou em um negócio de televisão por assinatura. O governo conservador de Aznar [o ex-primeiro-ministro espanhol José Maria Aznar] tinha achado que ele perdeu umas eleições anteriores devido ao El País e às empresas do grupo Prisa. Então desenvolveu uma campanha contra, mudou leis e normas, até que foi chamada sua atenção pela Comunidade Européia. El País começou a defender as empresas do grupo, que tinham sido atacadas, em sua visão, pelo governo. Isso chocou alguns leitores, que estavam achando que El País estava mudando um pouco a cobertura jornalística, não distorcendo e mentindo, mas dando uma ênfase à cobertura de alguns itens que afetavam o interesse do grupo. Isso criou um conflito grande. Agora, para você ver, esses conflitos apareceram nas páginas do El País, nas cartas de leitores e nas colunas de colaboradores que criticaram muito o El País dentro do próprio jornal.


Coisa rara de se ver na imprensa brasileira, não é? A não ser na carta do ombudsman. A transparência é uma dessas qualidades que você destaca no seu livro como característica dos grandes jornais. O que é um grande jornal?


M.M. – Uma das maneiras que você tem de avaliar um jornal é ver como esse jornal fala de si mesmo. Se é só auto-elogio ou se este consegue aceitar críticas, ou então permitir que a redação critique o próprio jornal dentro da empresa. Esse diferencial é importante para você avaliar quando um jornal é de qualidade, de elite mundial – elite no sentido de elite intelectual – ou não. Eu cito no livro que o Arthur Miller, o dramaturgo americano, diz que um bom jornal é uma nação falando consigo mesma.


Qual sua definição da qualidade da imprensa em cada uma das mídias? A notícia de impacto, a análise ou o que é que define essa qualidade?


M.M. – O que está havendo é que talvez, na mídia, haja menos reflexão do que havia antes. E a reflexão quem proporciona, principalmente, é à mídia impressa, os jornais diários impressos. A televisão é um bom meio, tem um impacto imediato, mas não permite a reflexão e não permite, por exemplo, a apresentação de questões complexas. O jornal impresso e a revistas – mais o jornal diário, por causa da periodicidade, que tem um impacto grande – são os grandes meios para a reflexão.


Vamos falar um pouco do futuro. Apesar de tudo, você parece otimista na sua análise da imprensa, a chamada imprensa que importa.


M.M. – Eu acho que a sociedade precisa de informação e análise, e quem tem feito esse papel tem sido a imprensa escrita, os jornais que menciono, os jornais de elite. Acho que isso vai continuar – talvez de maneira um pouco diferente, mas vai continuar. Vou lhe contar um exemplo da revista The Economist. O editor da Economist saiu, ficou [ali] uns doze anos, e quando saiu um jornalista do Guardian perguntou como explicava como uma revista como a Economist conseguiu dobrar circulação, no período em que ele foi editor-chefe, quando os jornais de qualidade estavam com problema de circulação e problemas de negócios. E ele deu uma resposta muito interessante. Disse: ‘Na nossa visão, no mundo inteiro, cada vez há mais pessoas com curso superior, com pós-graduação, que para sua profissão precisam estar bem informados e ter uma visão clara do mundo e de análise. Nós nos dedicamos a dar informação e sobretudo análise para essas pessoas. Muitos jornais que eram de qualidade foram na tendência contrária. Foram prover mais entretenimento às pessoas: fotografias maiores, títulos maiores e menos análise, achando que com isso atrairiam o leitor. Essa não é a nossa visão. Nossa visão é a contrária, tanto assim que a Economist hoje tem uma circulação de um milhão e trezentos mil exemplares por semana; é uma circulação paga e muito bem paga, pois a assinatura é cara, faz questão de cobrar a qualidade que oferece’.


Acho que esse exemplo ajuda a entender um pouco a perspectiva para uma imprensa séria que se dedica a respeitar o interesse do leitor e a fornecer informações e análises para seu leitor. É claro que, no mundo inteiro, em todos os países, há uma elite no país. Uma elite na área pública, um elite na área privada, dos negócios, da cultura, universidade, que precisa dessa confirmação. Acho que sempre haverá uma maneira do jornal impresso ou pela internet, ou ambos, para fornecer essa informação, porque há demanda para isso.


A concentração da propriedade da mídia é um problema?


M.M. – Essa questão da concentração é muito discutível. Você olha jornais, pega o exemplo que você quiser, em qualquer país; em alguns casos aumentou o número de jornais comprados por uma mesma empresa. Só que aí os jornais perdem importância e surgem outras empresas. Durante várias décadas se disse que a concentração nos EUA da televisão era absurda – redes monopolizavam toda a audiência. Pois bem. Só que as redes, hoje, têm uma pequena fração da audiência que tinha antes, porque a audiência foi fragmentada e setorizada. Hoje você tem players na imprensa que não se tinha há dez anos. Um dos maiores disseminadores de notícias é o Google, que ainda não existia. A área de informação é muito dinâmica e esse dinamismo dificulta a criação de monopólios estáveis de longo prazo. Se é uma concentração periódica ou em um momento dado, ela desaparece em uma etapa seguinte, que pode dar num outro tipo de concentração nessa área, mas novamente se fragmenta e surge outro tipo. Cada um desses meios novos de comunicação entra no mercado, dá cotovelada, se ajusta, pega o mercado, pega uma fatia de cada um deles e espera a próxima geração – que ninguém sabe como vai chegar.


Gostaria que você falasse sobre as novas pautas do jornalismo econômico. Existe agora uma cobrança muito maior em relação à questão da sustentabilidade, à questão da eficiência energética, ambiental e social das empresas. E o jornalismo econômico não parece ainda sensibilizado para o estado do mundo. Existe a possibilidade ou não vai fazer parte do mundo do jornalismo econômico essa preocupação?


M.M. – Eu acho que vai fazer parte sim e já começou a fazer parte. Talvez alguns jornais não tenham percebido a velocidade com que mudou o mundo dos negócios e há, em alguns casos, uma preocupação grande em cobrir aspectos como a produção e menos o ambiente dos negócios. Ou de cobrir as personalidades dos negócios e não de cobrir os efeitos dos negócios. Mas acho que a tendência é os jornais perceberem isso. Alguns deles podem não ir com a velocidade que seria necessária ou adequada. O grande salto que houve no mercado de capitais, com a criação do novo mercado das bolsas, que é um dos grandes fatores para as mudanças dos negócios feitos aqui, a exigência de mais transparência nas empresas, que obriga, como você disse, a uma renovação da cobertura dos jornais e dos negócios nos jornais – que está acontecendo, mas que ainda demora um pouco mais para ser verdade.


Você é otimista. Qual a capacidade que os jornais têm de se renovar diante desses desafios e seguir em frente no século 21?


M.M. – Potencialmente, há essa capacidade. O que tem que ver é se as empresas estão dispostas a investir nisto. Elas sofreram muito no começo desta década, tiveram que fazer grandes cortes de custos; a situação econômica está mudando agora. No ano passado, o crescimento do número de negócios de jornais foi bastante sensível, significativo. O que temos que ver agora é se essas empresas estão dispostas também a realocar alguns desses recursos para aumentar a qualidade dos jornais – que caiu bastante com a crise econômica. E temos que ver se eles têm a visão de melhorar a qualidade. Porque este é o fator mais importante de sua sobrevivência a longo prazo. Se um dia o jornal não se tornar indispensável ao leitor, ele não vai ler.