Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre organizações e seus crimes

Ainda comemorando a decisão do STF que mandou para o banco dos réus os denunciados no suposto esquema do ‘mensalão’, o Partido Globo já vive momentos de apreensão. Se a conduta do Supremo é festejada como absolvição política de sua cobertura jornalística, a decisão do Estado brasileiro de assumir como verdade histórica os crimes cometidos pelo regime militar trouxe desassossego à Executiva Nacional da agremiação da família Marinho.

Na edição de 30 de agosto de 2007, o jornal diário do partido manifestou seu desconforto com o lançamento do livro-relatório Direito à Memória e à Verdade, documento oficial em que o governo reconhece os crimes praticados pelo terrorismo de Estado implantado pela ditadura militar.

Publicado sob o título ‘Ato desnecessário’, o editorial afirma que ‘o pior que poderia acontecer, nessa altura da vida nacional, é a reabertura da discussão sobre algozes e vítimas da ditadura. Esta é uma ferida a ser cicatrizada’ [ver íntegra abaixo]. Pior para quem?, é lícito perguntar. Para quem precisa paginar a própria história ou para um país que, para avançar, necessita encarar o passado e desvendar o que ainda existe em seus porões?

Produzir amnésia

O braço jornalístico de oposição ao governo Lula não pára por aí. Avança categórico no texto. Não há margem para ambigüidades quando se trata de preservar a biografia de velhos companheiros. Segue firme em seus propósitos ao declarar que ‘a Lei da Anistia cuidou de reparar a maior parte das situações de flagrante injustiça e violação dos direitos humanos cometidas durante os anos de chumbo, mas alguns setores, com razão, criticam o fato de não se ter tido a mesma preocupação em relação aos militares que foram vítimas de grupos armados de esquerda’.

O zelo com a extrema-direita de pijama é comovente. É um texto para ser emoldurado e lido em alguma reunião nostálgica de grupos de oficiais da reserva e reformados da Marinha, Exército e Aeronáutica. Mas certamente não é apenas isso que mobiliza a família detentora do maior colosso midiático do país.

Esta não é a primeira vez que os fantasmas da ditadura sobressaltam o Partido Globo. Para se preservar como instância de poder real, necessita ocultar o papel de instância legitimadora de um regime que ‘matou,decapitou, esquartejou, estuprou, torturou e ocultou cadáveres de seus opositores’. Para se manter como narrador, precisa incessantemente produzir a amnésia. Para promover representações do real deve interditar o aparecimento do passado recente.

Cúmplice e protagonista

Há três anos, ao publicar um caderno especial sobre o golpe de 1964, O Globo (28/3/2004) apostou todas as fichas na produção do esquecimento. Nunca foi tão pedagógico o exercício de reescrever a história, primando menos pela riqueza de detalhes que pela plenitude de ausências.

Foi necessário ignorar um dado elementar. Não se conta um período omitindo seus principais atores, não se desvela um processo ignorando suas principais motivações e beneficiários. O que o jornal da Rua Irineu Marinho, 35 conseguiu foi montar uma colagem. Um mosaico quase anedótico ao qual pretendeu chamar de resgate de uma época.

Onde estavam, ao longo de 16 páginas, a CGT, as Ligas Camponesas, a estrutura partidária e suas principais lideranças? Em que momento se tocou na importância da atuação do complexo IPES/IBAD junto aos setores militares na urdidura do golpe? Em que consistiam as tão propaladas (e necessárias ainda hoje) ‘reformas de base’ e que segmentos a elas se opunham?

Essas lacunas não evidenciavam nenhuma deficiência intelectual dos editores do caderno. O fato explicativo é conhecido por todos: a imprensa em geral – e a Rede Globo de forma particularíssima – está impedida de tratar com abrangência de um episódio do qual, mais que cúmplice, foi protagonista. Num primeiro momento, como articuladora junto à opinião pública do arrazoado golpista. Posteriormente, como legitimadora de um regime que matou e torturou para zelar pelos interesses do grande capital.

Projeto simétrico

Não havia um só artigo, no suplemento, publicado por exilados ou oponentes do regime. Um caderno que abria com o atentado ao Riocentro (e continuava escondendo a segunda bomba) tentava explicar, na linha iniciada por Elio Gaspari, a ditadura como uma imensa briga de patotas e concedia ao ex-presidente José Sarney um generoso espaço negado a outros atores da época –, um caderno assim, não produzia apenas uma visão falseada; era, no sentido psicanalítico, um sintoma. Revelava, pelo que maldizia, o que ainda habita a alma das elites brasileiras: o descaso com a inteligibilidade histórica, o velho patrimonialismo e a inequívoca vocação adesista.

Entre os clãs Marinho e Sarney havia mais que afinidade eletiva. O que os unia, embora tenha havido estremecimento recente, eram o DNA do atraso e o cálculo frio da oportunidade histórica. As trajetórias de José Sarney e TV Globo se confundem no tempo dos generais.

A emissora de Roberto Marinho começa a operar em 1965, sustentada por um acordo técnico e financeiro com o grupo Time-Life, cujo escopo foi motivo de uma CPI no Congresso Nacional, no ano seguinte. Sarney, no mesmo ano, apoiado por Castelo Branco e tecendo loas aos ditadores de plantão, torna-se governador maranhense. Cinco anos depois, a Globo, esteio simbólico do regime, completava em seu noticiário a ação propagandística do regime. Em 1970, o oligarca assume uma cadeira no Senado. Juntos no mesmo projeto. Perfeitos na simetria.

Justiça pautada

Nos anos 1980, Sarney se dedicaria, nos bastidores, a abortar a campanha das Diretas-Já. O mesmo faria a família Marinho em seu monopólio televisivo. Quando, enfim, assume a Presidência, após a morte de Tancredo Neves, a ‘afinidade eletiva’ se transforma em promiscuidade político-empresarial. A NEC do Brasil, um dos principais fornecedores de equipamentos de telecomunicação para o governo, termina nas mãos das Organizações Globo por 1 milhão de dólares, graças à ação do então ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães. Logo em seguida, como nos revela o documentário Muito Além do Cidadão Kane (de Simon Sartog, realização do canal 4 da BBC), o valor de mercado seria de 350 milhões de dólares!

Antes que a nova Constituição brasileira tirasse do presidente a prerrogativa de distribuir concessões, Sarney deu mais 90 e ficou com duas, que se tornariam afiliadas da Globo. Nunca cinco anos de mandato valeram tanto. Ou tão pouco, dependendo do ângulo. O certo é que ambos – Organizações Globo e Sarney – foram, cada um no seu campo, militantes ativos de um regime que se valeu do terror de Estado para aniquilar adversários.

Esgotado o ciclo militar, a estrutura monopolística foi fiadora de mais uma transição por alto, que manteve intocáveis tanto os antigos dirigentes quanto seus torturadores de estimação. Nada que impedisse um reencontro em suplemento especial ou ação articulada, se o momento histórico fosse desfavorável ao interesses de um deles. O perigo não mora tão longe. E sua simples existência clama por reforma política imediata e legislação que democratize o conteúdo dos meios de comunicação.

A Globo (braço televisivo do Partido) é uma instituição que já aprendeu que só preservará a imagem se dela forem extraídos todos os cenários que ajudou a moldar durante os 20 anos de terror. No dia 5 de outubro, data em que expiram suas concessões públicas, é fundamental que sejam apagados da memória nacional fatos reveladores de sua cumplicidade com um regime que cometeu crimes imprescritíveis. Em tempos de justiça pautada, não é bom para a nomenklatura global e seus quadros orgânicos que se restabeleça o sentido preciso do que vem a ser uma organização criminosa, como opera e com quem se alia.

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Ato desnecessário

Copyright O Globo, editorial, 30/8/2007

Foi inoportuna a decisão de transformar em ato oficial no Palácio do Planalto, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o lançamento de um livro com o balanço do trabalho da Comissão de Mortos e Desaparecidos, da Secretaria de Direitos Humanos do próprio governo federal.

Saradas as feridas de um período nada edificante da história recente do país, a ninguém interessa esse tipo de iniciativa, potencialmente capaz de produzir tensões e de irritar tecidos sociais ainda sensíveis.

O pior que poderia acontecer, nessa altura da vida nacional, é a reabertura da discussão sobre algozes e vítimas dos porões da ditadura militar. Esta é uma ferida a se deixar cicatrizada.

No final da década de 70 e na de 80, o país soube operar a transição da ditadura para o regime democrático, sem a necessidade de pedradas, tiros e acerto de contas.

Em 1979, a Lei da Anistia cuidou de reparar a maior parte das situações de flagrante injustiça e violações dos direitos humanos cometidas durante os anos de chumbo.

Mas alguns setores, com razão, criticam o fato de não se ter tido a mesma preocupação em relação aos militares que foram vítimas de grupos armados de esquerda.

Certamente, é importante lembrar o 28º aniversário da Anistia e a relevância da atuação de 11 anos da Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada para apurar detalhadamente o que aconteceu nos vários casos envolvendo presos políticos e vítimas da repressão.

Ressalte-se: ela não foi instituída para revanchismos.

A partir desse trabalho, a Comissão recomendou a indenização, pelo governo, de 221 famílias — ação que também não está imune a críticas, por causa de critérios discutíveis usados no cálculo das indenizações.

Seja como for, trata-se de uma atividade minuciosa, que envolve situações melindrosas e feridas dolorosas do passado. A melhor maneira de levá-la à frente é discretamente.

Espera-se, portanto, que seja apenas um equívoco do governo aproveitar o 28º aniversário da Anistia para um ato que, em vez de apaziguar espíritos, fere susceptibilidades, desenterra velhas rixas e reforça a incabível idéia de se atropelar a Lei da Anistia, que foi recíproca.

Em países menos previdentes em relação a fatos de seu passado recente, como a vizinha Argentina, essa volta no tempo tem se mostrado um poderoso fator de desestabilização interna e dificultado a consolidação da ordem democrática, duramente reconquistada.

Não é este o futuro que se quer para o Brasil.

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Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro