Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sobre retrospectivas e sutilezas

A retrospectiva publicada pela Folha de S. Paulo na edição de segunda-feira (29/12) apresenta 2014 como “o ano bipolar”. Trata-se de uma definição interessante, mas é também uma simplificação para o recente período de turbulências na agenda pública, em grande parte provocadas ou turbinadas pela própria imprensa.

Como se sabe, há uma divisão concreta entre a realidade e a versão que a mídia nos apresenta, mas a magia da vida contemporânea está exatamente na mistura que se faz entre os fatos e seus signos, entre o acontecimento e a notícia.

Assim, na visão da Folha, o brasileiro foi da negação ao entusiasmo com a Copa do Mundo, e as manifestações de pessoas nas grandes cidades, que se haviam organizado em torno de protestos generalizados, transformaram-se em celebrações pelos bons resultados iniciais da seleção brasileira nas novas arenas do futebol. A humilhante e inesperada derrota para a Alemanha, por 7 a 1, interrompeu a festa, mas não levou os brasileiros de volta ao clima de depressão: foi um banho de realismo e uma lição de humildade.

O balanço do jornal paulista segue nessa mesma batida ao analisar os fatos da política e da economia, as relações internacionais, a cultura e o mundo do entretenimento.

A oscilação da geopolítica entre a crise na Ucrânia, que ameaça requentar a Guerra Fria, e a surpreendente abertura de relações entre Estados Unidos e Cuba, é apresentada como outro aspecto desse contexto de radicalidades em que o mundo midiatizado parece estar navegando. No entanto, é preciso cautela ao analisar as tentativas da imprensa de fazer resumos e simplificações sobre determinados períodos da vida comum.

A ascensão da mídia sobre a vida social, ao mesmo tempo em que limita um campo específico para a representação da realidade, precisa mostrar essa realidade como algo interessante, denso e instigante – e isso se faz pela manipulação dos signos. Como a expressão da realidade se produz com o propósito de torná-la mais espantosa, para efeito de consumo, deve-se desconfiar de que nem tudo é o que parece.

A realidade é sutil

Assim, toda retrospectiva de notícias é apenas uma tentativa de reafirmar o que foi dito no dia a dia da mídia ao longo do ano, e serve principalmente para consolidar o sentido que a imprensa tentou dar aos acontecimentos.

Assim, não estamos lendo um relatório preciso, mas uma peça de ficção. Por isso, não poderia soar mais honesto o sumário do processo econômico apresentado pela Folha em estilo novelesco (ver aqui) em seu balanço de 2014. O texto, pobre como os diálogos de uma novela da televisão, resume melhor o jornalismo econômico do que a realidade econômica.

Sabe-se que interpretar os fatos da economia é tarefa complicada, porque o tema envolve a precisão dos números e a dinâmica das análises de comportamento, uma vez que indicadores produzem emoções e emoções afetam indicadores.

Assim, ao optar por uma fabulação novelesca para compor a página dedicada a uma súmula do que teria sido a economia brasileira no ano que se encerra, o jornal paulista assume que tudo é relativo: a crise de hoje pode estar construindo as bases de uma força econômica mais adiante.

Com o texto sobre o escândalo da Petrobras, que tenta resumir a escalada de uma investigação inicialmente limitada, e da análise sobre o cenário internacional, duas peças que se propõem como modestas legendas que nada esclarecem, o caderno especial da Folha não pode ser lido como uma retrospectiva de 2014, mas como uma oportunidade que alguém encontrou para abrigar a ideia de que este tem sido um “ano bipolar”.

A rigor, a rotina do jornalismo é que produz essa oscilação constante entre os extremos dos acontecimentos. Em termos de linguagem, é justamente aqui que se distingue o bom do mau jornalismo: na capacidade de identificar e descrever as sutilezas presentes em toda notícia.

A linguagem jornalística se configura cada vez mais como um campo da semiótica, um ponto além da linguística, que contém a linguagem verbal. Mas a imprensa quer convencer o leitor de que a palavra – ou a imagem – tem um valor absoluto, porque é dessa fantasia que retira seu poder.

A realidade é sutil, a imprensa é bipolar.