Há bem mais de dois mil anos, um filósofo que desconfiava colocou em xeque os discursos unilaterais e os que simulavam a participação de parcela do público de então. O filósofo Sócrates teve de beber cicuta e morrer envenenado por fazer perguntas e discursos incômodos. Dois mil e 400 anos depois, as perguntas incômodas geram processos judiciais em vários pontos do planeta. E jornalistas são condenados, como reparação moral ou financeira e mesmo com detenções ou prisões, a rever ou frear sua forma de atuação e sua arma talvez principal no exercício do ofício: a pergunta.
Quando se fala em Grécia pré e pós-socrática, parece haver uma demarcação que situa diferenças entre um período e outro. Grosso modo, podemos considerar que houve uma mudança de método, e que tal método gerou o fértil campo da desconfiança, embalada pela discussão, pelo debate, por algo que, de forma um pouco exagerada, poderíamos chamar de dialética.
A contraposição socrática aparecia em um mundo rodeado pelos retores. Eram oradores que, por meio de escolas ou de forma autodidata, discursavam sobre o mundo mas não estabeleciam uma espécie de controvérsia. O questionamento, a discussão, a dúvida… a pergunta foram centrais na Grécia pós-socrática. E com ela inaugura-se, no Ocidente, uma forma de lidar com a realidade. Discursar e contrapor. Persuadir e duvidar. Alguns discursam, outros duvidam.
Voz da dúvida
Porque tal comparação aqui, neste espaço? Porque, dois milênios e pouco depois, o jornalismo, tributário de gregos e romanos, estabelece discursos e tenta propor uma controvérsia; fontes declaram e fontes desmentem; especialistas argumentam e outros desconstroem. Por isso, quando se afirma que Sócrates destruía argumentos, não poderemos dizer, ainda, que ele seria um “pai das perguntas”, um “avô do jornalismo”. Mas podemos dizer que deu contribuição significativa para que, a partir de Platão (seu discípulo) de forma mais sistemática, fosse desenvolvido um método dialético de perguntas e respostas, de discursos e de contra-discursos.
Tal perspectiva, embora não nos detenhamos em tratar das diferentes concepções de dialética de Platão a Hegel e Marx, por exemplo, parece estar no centro da palavra e de sua representação. Embora não sejam especificamente nem discípulos formais da Retórica e da Dialética, os jornalistas atuais são tributários delas. A partir da cobertura e da narração de fatos, dispõem-se a ser retores contemporâneos imediatos.
Mas como nem só de Retórica vive a contemporaneidade – e Sócrates já havia sacudido tal certeza – também os jornalistas atuais tentam corresponder a uma expectativa, a de serem os formuladores de perguntas, e sobretudo de perguntas incômodas que sacodem mais ainda as certezas, expõem contradições e ampliam o universo de percepção imediata de fatos, de relatos e de versões. Por isso, a apuração, ainda no ciberespaço que tanto promete liquidar ou diluir a importância do jornalismo, é central na atividade que exige o tempo inteiro do jornalista, especialmente dos repórteres – e sem eles não há jornalismo – a sucessão de perguntas que geram a percepção sobre os acontecimentos.
A cada perseguição de jornalistas, parece corresponder um mérito, o de desafiar poderes e certeza; o de expor dados ocultos relevantes socialmente…
O problema central é quando o jornalista deixar de expor dados por temor de processos ou por conveniência ou vantagens pessoais. Ou quando deixa de ser a voz da dúvida e passa a ser o porta-voz do poder ou da empresa que quer ocultar dados relevantes.
O centro nevrálgico
Quando o ex-ministro Antônio Palocci cai, perguntas ficam no ar: com ele, cai também a estratégia das empresas particulares de achacar o governo ou de chamar ex-ministros para consultorias pagas a peso de ouro em troca do “caminho das pedras”? Assim, junto com as perguntas incômodas que não são feitas, pesa sobre o profissional as respostas incômodas que não são dadas, às vezes porque o profissional não tem condições pessoais de fazê-las, mas sobretudo porque, em muitas ocasiões, é a própria empresa que o contrata que está de braços dados com os interesses dos anunciantes que consultam ex-ministros. Ou os sucessivos processos judiciais constrangem a liberdade de ofício necessária à pergunta.
E isto gera a pergunta pela metade, um sem resposta vazio que povoa as coberturas incompletas, os discursos unilaterais, a apuração capenga. Quem quer tanto consultoria que já não sabe os caminhos? Quer apenas proximidade com o poder e com os núcleos de decisão para daí retirar vantagens particulares.
Além de antijornalísticas, tais coberturas vão atrás apenas do “corrupto” e deixam de lado o “corruptor”, ou seja, aquele que efetivamente leva vantagens mais gerais e causa danos irreversíveis ao sentido público do governo ou do Estado. Faltando perguntas, fica ainda mais fácil faltar respostas. A meia pergunta não serve.
Por isso, o jornalista Luiz Cláudio Cunha, em seu discurso ao receber o título de Notório Saber pela Universidade de Brasília, em 9 de maio de 2011, publicado no Observatório da Imprensa dois dias depois, inicia dizendo que “O jornalismo de excelência se faz com excelentes perguntas” (ver “Todos temos que lembrar“). Como grande jornalista, Cunha segue o fio socrático, e lembra que “a pergunta desafia, provoca, instiga, ilumina a inteligência, alimenta o pensamento”.
O jornalismo, para continuar relevante no século 21 e no ciberespaço, terá de cultivar sobretudo a apuração, ou o que seria o centro nevrálgico inicial de sua atividade: a pergunta. Ou, melhor dizendo, a pergunta incômoda.
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[Francisco José Castilhos Karam é professor na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS]