Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Stédile e a ‘manada midiática’

A grande mídia em geral comeu mosca na cobertura de João Pedro Stédile na Comissão Parlamentar da Terra. Um dos principais líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ele fez uma avaliação sobre a questão agrária no país que, coberta sem preconceitos, poderia sugerir várias pautas. Ainda que alguns tenham publicado que Stédile tem um discurso para os trabalhadores do movimento e outro para públicos externos, uma narrativa mais isenta do que se passou no Congresso poderia produzir matérias com vieses social, econômico e político. Mas o que mais se leu, ouviu e viu na mídia foi sobretudo o ‘abril vermelho’, os beijinhos trocados com o senador Eduardo Suplicy e a ‘desculpa’ pela afirmação de que a vida do governo seria infernizada.

Até mesmo na redação da TV Senado, para a qual cobri a audiência pública, houve quem dissesse que aquilo era o que todas as agências estavam dando. Então deveríamos nós também dar destaque ao excêntrico e ao radical, apesar de minha insistência de que, no contexto da audiência, isso era espuma ideológica e que não refletia a profundidade do depoimento em si. Consegui escapar do efeito ‘manada midiática’, irmão siamês daquele efeito que desloca hordas de investimentos no mercado internacional de capitais, prejudicando de maneira cíclica e particular mercados ‘emergentes’ como o brasileiro.

Mas se as frases de efeito não eram o único lide de uma matéria que refletisse com fidedignidade a visita ao Senado, qual seria então o foco informativo? De tudo o que foi dito em mais de uma hora de depoimento inicial e nas horas seguintes de sabatina com deputados e senadores, uma possível abordagem seria sobre o que esperar do governo Lula para o setor. Segundo Stédile, se continuar no ritmo atual, o atual presidente da República ficará longe de assentar, até o fim do mandato, 400 mil famílias como prometido no fim do ano passado.

‘Puxa-sacos’

Ele reconheceu que a vitória de Lula foi também uma conquista para o MST, uma vez que no PT existem vários integrantes que comungam da visão de uma reforma agrária abrangente no país. Entretanto, a prática dos assentamentos no atual governo está bem abaixo do que o movimento esperava. ‘No ano passado foram assentadas 14 mil famílias, quando deviam ser 30 ou 40 mil. Este ano foram sete mil até agora. Nesse ritmo, não vão conseguir as 400 mil’, reclamou Stédile. Ele afirmou que o Estado brasileiro não está preparado para atender aos pobres porque está engessado. O ideal seria reestruturar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), até mesmo para o governo conseguir repassar o R$ 1,7 bilhão prometido pelo presidente Lula recentemente para novos assentamentos.

O líder do MST também sabe que, para assentar as famílias, é necessário antes indenizar os donos dos latifúndios improdutivos, conforme reza a Constituição. Isso custa caro. Bem mais do que o orçamento espremido de 1,1 bilhão de reais que o ministro do Desenvolvimento Agrário Miguel Rosseto herdou para este ano.

A restrição financeira não é o único problema. O Estado, constatou Stédile, está sucateado, a começar pelo Incra. Boa parte dos funcionários da instituição que entendem da questão fundiária estão se aposentando. ‘Dos que ficam, metade não ajuda. Sobra o presidente e uma meia dúzia de puxa-sacos’, disse. Esse não é um quadro inédito para a instituição criada em 1970 durante o regime militar. Extinta pelo governo em 1987, concomitantemente ao processo de Assembléia Nacional Constituinte, foi recriada pelo Congresso dois anos depois. Mas além do Incra, Stédile reclamou da situação precária da Conab, da Embrapa e das quebradeiras das empresas responsáveis em cada estado pela pela assistência técnica e extensão rural, as Emater.

Era FHC

Ele não atribuiu essa situação ao atual presidente da República, que já a encontrou assim ao chegar. As políticas de abertura e privatização do período Fernando Henrique Cardoso foram, segundo Stédile, desastrosas para o modelo agrícola brasileiro ao desaparelhar o Estado. Nesse período teria se cristalizado uma subordinação à lógica do capital internacional e o controle da produção de grãos – hoje um dos principais itens da pauta de exportação do país – foi parar nas mãos de multinacionais. Empresas como a Monsanto, Cargill e Bunge, todas com sede nos Estados Unidos, estão entre as principais beneficiárias do novo modelo.

Como o Brasil se tornou o maior produtor de soja e está entre os primeiros no mundo na produção de outros produtos agrícolas, essas empresas ganham o que dificilmente lucrariam em outro lugar do planeta. Nesse sentido, os recordes que a nação vem batendo na agricultura têm que ser olhados com cuidado porque muitas vezes se baseiam em monoculturas para exportação (como laranja, açúcar e a própria soja). ‘Isso é o que as multinacionais querem, mas nenhum país se desenvolveu nessa base.’

Some-se a isso o pagamento de royalties às multinacionais, se e quando o governo legalizar definitivamente o uso de sementes geneticamente modificadas. Sobre esse assunto, aliás, Stédile esclareceu que o MST não é contra os trangênicos e o avanço da biotecnologia, desde que a patente pertença a uma empresa brasileira como a Embrapa. Assim, não precisaria pagar a taxa a grupos como a Monsanto.

A fabricação de tratores e colheitadeiras no Brasil, também dominada por multinacionais como a Massey Ferguson e a Valmet, foi apontada como outro setor onde o mercado interno não vem se beneficiando de uma reforma agrária abrangente. No ano passado, segundo ele, foram vendidos cerca de metade dos tratores que se vendiam nos anos 1970.

Durante o regime militar, por sinal, a concentração de terras que sempre foi exagerada, aumentou. Como forma de ocupar a Amazônia, extensas áreas foram doadas pelo governo para empresas nacionais e estrangeiras, que receberam ainda incentivos fiscais como atrativo extra. A agropecuária extensiva foi uma das principais atividades econômicas desenvolvidas por esses grupos. O resultado que se viu foi a manutenção dos graus de pobreza e desigualdade.

Para alterar esse modelo, ele defendeu a plataforma contida na ‘Carta da Terra’, do MST. Seria um novo tipo de reforma agrária baseada num modelo agrícola com distribuição de renda e apoio a empresas nacionais. Esse modelo fugiria dos padrões de compensação social do tipo do bolsa-família, por exemplo. Como uma das principais preocupações no país hoje é com o desemprego, a reforma agrária seria uma resposta à altura. Segundo Stédile, é a forma mais barata de gerar emprego na economia, gastando cerca de oito mil reais por cada posto de trabalho gerado. Dessa forma, incluiria milhões de brasileiros que hoje não têm suas necessidades básicas asseguradas. ‘Num sistema democrático, não basta fazer eleições a cada quatro anos. É fundamental garantir a todos os mesmos direitos.’

Ele frisou que em diferentes momentos históricos, o Brasil perdeu a oportunidade de fazer a reforma agrária para corrigir essas injustiças e desenvolver o mercado interno. Fosse em meados do século 19, quando poderia ter seguido o modelo adotado por Abraham Lincoln nos Estados Unidos. O ‘Homestead Act’ garantiu gratuitamente 68 hectares de terra a qualquer família que se comprometesse a trabalhar nela por, no mínimo, cinco anos. Fosse pela inspiração nos processos ocorridos em outros países como na França revolucionária, no Japão e na Itália do pós-guerra, ou até no México zapatista. Fosse pela frustração das ‘reformas de base’ de Jango Goulart, que culminaram no golpe de 1964.

Modelo de reforma agrária

O modelo citado por Stédile não teria o caráter revolucionário de alguns dos episódios ocorridos naqueles países. Ele teria cinco pilares: distribuição de terra, casamento com a agroindústria, investimento em educação, desenvolvimento de tecnologia e apoio creditício.

Quanto à distribuição de terra, ele esclareceu que o movimento não é contra a propriedade particular e por isso não se está falando de uma revolução socialista, mas sim de uma ‘revolução burguesa’. O que o MST não tolera, de acordo com Stédile, são os latifúndios improdutivos, que pela Constituição podem ser desapropriados mediante indenização aos donos. A propósito, o texto constitucional é considerado plenamente satisfatório para a reforma agrária. ‘As outras leis e as interpretações é que atrapalham.’

Segundo Stédile existem quase 55 mil latifúndios improdutivos no país, com aproximadamente 120 milhões de hectares. Pelo Censo Agropecuário de 1996, seriam menos latifúndios, 35 mil, porém ocupando uma área de 166 milhões de hectares. Em qualquer dos casos, um espaço que chega a ser maior do que o de alguns países. Não bastasse a enormidade da área, ela é extremamente concentrada nas mãos de poucos. As grandes propriedades, com mais de mil hectares, representam apenas 1% do total de imóveis, ocupando 45% do total da área cadastrada e agravando a desigualdade social no país.

Para o líder do MST, essa quantidade de terra, que pode ser desapropriada pela Constituição, daria para assentar tranqüilamente cerca de 4 milhões de famílias e ainda sobraria espaço. São pessoas que estão na base da pirâmide social e normalmente fazem parte também do cadastro do Fome Zero e dos programas sociais do governo.

‘Se a reforma agrária desapropriasse os latifúndios, por que faríamos ocupações?’ Como a falta de dinheiro e de estrutura administrativa impedem a desapropriação em larga escala, as ocupações continuam acontecendo em várias regiões. O Superior Tribunal de Justiça já declarou que a ocupação de terras improdutivas não é crime.

Ainda em clima da legalidade, ele amenizou a ameaça de retaliação na base da violência que outro líder do movimento, Jaime Amorim, fez recentemente. Stédile disse que não é política do MST orientar que os trabalhadores andem armados. ‘Até porque quem normalmente leva a pior somos nós.’ Nos últimos 20 anos foram assassinados 1.671 trabalhadores rurais, nem todos integrantes do movimento. ‘Somos contra o uso da violência para resolver os problemas sociais.’ Ele chega a dizer que o MST tem servido em várias situações como válvula de escape e é um movimento que consegue organizar os trabalhadores de forma ordeira. ‘Se não fosse o MST, o meio rural já teria virado um barril de pólvora como na Colômbia.’ O apelo do senador Eduardo Suplicy para que o movimento continuasse sendo pacífico foi respondido com o reconhecimento de Stédile quanto às demonstrações de apoio do parlamentar paulista nos momentos mais difíceis. Daí a despedida com um beijo fraternal no rosto, gesto bastante explorado pelas máquinas fotográficas dos jornais e agências.

Valor-notícia

Quanto aos outros pilares da ‘Carta da Terra’, o ‘casamento com a agroindústria’ defendido por ele seria baseado na análise do perfil específico de cada área agriculturável. Por ser uma reforma burguesa e não socialista, essa análise seria elaborada a partir da realidade de mercado. O investimento em educação, levando escolas aos assentamentos, também seria necessário para formar cidadãos bem informados e preparados para tirar o melhor proveito do seu trabalho. O desenvolvimento tecnológico com injeção de ânimo na Embrapa seria voltado para atividades que respeitem o meio ambiente e a saúde da população, com o desenvolvimento de infra-estrutura adequada, inclusive para o escoamento da produção agrícola.

Por fim, linhas de crédito desburocratizadas. Nesse aspecto, ele se confessou com saudades do então ministro Delfim Netto, que dava o equivalente a dezenas de bilhões de reais para o plantio. ‘Hoje, quando conseguimos um bilhão, damos pulos de alegria.’

 Em razão das dificuldades para colocar essas medidas em prática é que surgiu a badalada frase de efeito que o ativista do MST usou sobre ‘infernizar’ a vida do governo. ‘A palavra realmente foi infeliz. Usei no sentido de pressionar, azucrinar.’ Já o ‘abril vermelho’ teria sido uma referência às bandeiras vermelhas do MST se espalhando pelo país, segundo ele, tirada de contexto.

Conforme o visto, levando em conta apenas o tempo da apresentação inicial de João Pedro Stédile e descontando o período das respostas aos deputados e senadores, haveria bem mais assuntos a serem explorados pela imprensa do que as frases de efeito que ganharam as manchetes. Não que se deixasse de fora o exótico. Afinal, isso também confere ao acontecimento o chamado ‘valor-notícia’. Entretanto, o efeito ‘manada midiática’ muitas vezes embrutece a cobertura – até porque, para certos grupos de elite, é melhor que assim seja.

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Jornalista, mestre em Políticas de Comunicação (Universidade Westminster, Londres), em telejornalismo (Universidade Columbia, Nova York) e ex-pesquisador sobre a Sociedade da Informação (Universidade Tsukuba e Hitotsubashi, Tóquio)