Três ingredientes explosivos ocupam a mídia de todo o mundo desde o início do caso Dominique Strauss-Kahn: sexo, dinheiro e poder. Acusado de estuprar a camareira do hotel onde estava hospedado em Nova York, DSK − como é conhecido o ex-diretor-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI) − foi detido na noite de 14 de maio quando já estava a bordo de um voo para a França.
O escândalo logo ganhou os holofotes da mídia e a promissora carreira de DSK, até então nome forte para a sucessão do presidente francês Nicolas Sarkozy, sofreu um grave revés. Enquanto a mídia francesa, tradicionalmente mais reservada quando o assunto envolve a vida privada e seguidora do princípio da presunção da inocência, evitou expor DSK, a imprensa dos Estados Unidos não deu trégua ao então dirigente do FMI. Fotografias de DSK algemado e detalhes do caso foram estampados nos jornais, causando perplexidade na população francesa.
Advogados contra “frenesi”
Teorias da conspiração passaram a ocupar as páginas dos jornais, alimentadas por uma declaração antiga de DSK admitindo que poderia ser pego em uma armadilha envolvendo mulheres. Mantido em prisão domiciliar em Nova York, DSK foi indiciado e negou as acusações de ato sexual criminoso, tentativa de estupro, abuso sexual e cárcere privado.
Ele está montando uma equipe de especialistas em diversas áreas para combater essas acusações e seus advogados criticam duramente o “frenesi” da mídia em torno do assunto. Reclamam dos constantes vazamentos de dados da polícia de Nova York para a mídia e ponderam que o repasse das informações pode prejudicar a imparcialidade do julgamento. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (31/05) pela TVBrasil discutiu a cobertura da mídia neste polêmico episódio.
Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro dois correspondentes estrangeiros: Mac Margolis, da revista americana Newsweek, e Marie Naudascher, que trabalha para a Rádio RTL-France, a emissora mais popular do país. Margolis trabalha para a Newsweek há quase três décadas e escreve uma coluna semanal para O Estado de S. Paulo. Colaborou em The Washington Post e The Economist e recebeu o prêmio Maria Moors Cabot, da Universidade de Columbia. Marie Naudascher estudou jornalismo em Nova Déli, na Índia. Formada em 2008 na Escola de Jornalismo da Sciences Po, em Paris, Marie trabalha também como produtora de televisão para documentários franceses no Brasil.
O convidado no estúdio de São Paulo foi Fábio Zanini, editor do caderno Mundo da Folha de S. Paulo. Zanini Foi correspondente do jornal na África do Sul e em Londres e repórter de política em São Paulo e em Brasília. Formado em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da USP, Zanini tem mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Londres.
Pré-julgamento
A reportagem exibida antes do debate ouviu as opiniões do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva e do antropólogo Roberto DaMatta, que viveram nos Estados Unidos. Para o jornalista, a Justiça americana é “mais cega” do que a de outros países, como o Brasil. Lá, ricos e famosos têm o mesmo tratamento de pobres e anônimos. “No entanto, esta situação também mostra uma das piores coisas da sociedade americana, inclusive da mídia, que é a condenação precoce de acusados por algum crime”, afirmou Carlos Eduardo.
A simples exposição de DSK algemado e sendo levado para a prisão, na avaliação do jornalista, pode interferir na opinião daqueles que irão julgar o caso. Carlos Eduardo considera hipócrita a visão da cultura americana sobre a sexualidade e avaliou que aquela sociedade ultrapassou os limites do bom-senso nesta questão. Brincadeiras e comentários pueris podem ser são confundidos com assédio até entre crianças de três anos, como ocorreu com seu filho quando frequentava o jardim de infância.
O que choca mais
O antropólogo Roberto DaMatta explicou que a mídia francesa guarda as mesmas características da brasileira quando aborda a vida erótica das autoridades. “Nós somos tão discretos quanto os franceses. Somos mais parecidos com a imprensa americana no que diz respeito a escândalos envolvendo enriquecimento ilícito, corrupção, tráfico de influência e, sobretudo, ‘disse-me-disse’”, comparou Da Matta.
Nos Estados Unidos a “secular” visão do gênero masculino encarado como o “bandido da história” ganha força, ao contrário do Brasil, onde a mulher é rotulada de sedutora e, em muitos casos, vista como provocadora do assédio. No caso DSK, alguns fatores contribuem para tornar a história ainda mais impactante nos Estados Unidos: a diferença profissional e de prestígio entre denunciante e denunciado.
Autocrítica francesa
O Observatório mostrou a opinião de dois correspondentes brasileiros no exterior. De Paris, Deborah Berlinck contou que o caso DSK levou a mídia francesa a uma reflexão sobre seus procedimentos e à autocrítica. Políticos e jornalistas tinham conhecimento do comportamento pouco usual, desrespeitoso e, em muitos casos, indecente, do então diretor do FMI em relação às mulheres.
“Ninguém falou, ninguém publicou. E, hoje, esta imprensa começa a se questionar e a ver até que ponto a reverência ao poder ou o respeito à liberdade privada impediu que uma parte importante da personalidade de um futuro candidato [à presidência] da França fosse discutida ou revelada aos eleitores franceses”.
Berlinck contou que recentemente uma jornalista francesa revelou uma história chocante passada há alguns anos: ao entrar em um elevador com DSK, teve seus seios apalpados pelo economista. “Ela me disse: ‘Bom, isto não foi feito de maneira agressiva mas, de qualquer forma, mostra um lado da personalidade de Dominique Strauss-Kahn que não podia ter sido ocultado durante tantos anos’ ”, relembrou Berlinck.
O show dos tabloides
Baseado em Nova York, Lucas Mendes disse que quem acompanhou o noticiário pela rede Fox e pelos os tabloides americanos pode achar que DSK é “o pior homem do mundo”, já que chegou a ser comparado pelos tabloides a um “chimpanzé no cio”. “O New York Post e a rede Fox, defensores de causas republicanas, conservadoras e patrióticas, lideram este surto de francofobia, que teve seu ponto alto quando a França foi contra a invasão do Iraque”, explicou Lucas Mendes.
Algemado e abatido, o ex-diretor do FMI passou pela exposição pública conhecida nos Estados Unidos como “caminhada do perpetrador”. “A motivação moral, política e circense da caminhada humilhante ganhou força nos tempos da luta contra a máfia de Al Capone, mas se tornou uma tradição em Nova York em um acordo entre a polícia e a imprensa. A imprensa precisa mostrar imagens, a polícia precisa mostrar serviço”, disse o correspondente.
Só vale o escrito
No debate ao vivo, Dines perguntou a Marie Naudascher como são os procedimentos das redações francesas nos casos que envolvem escândalos de autoridades. A jornalista explicou que, na França, vale a informação da Justiça. “Se tem uma pessoa que foi estuprada ou assediada, se não tiver um processo na Justiça, ninguém vai publicar nada, ninguém vai escrever nada”. Boatos e até histórias detalhadas não são levados em consideração pela imprensa: é preciso que a vítima entre com um processo para que o assunto seja abordado pela mídia. As escolas de jornalismo ensinam um código de ética onde a difamação tem destaque.
A correspondente relembrou que o presidente francês François Mitterrand tinha uma vida pessoal atribulada e conhecida no meio político e pela imprensa, mas o fato só foi publicado pelos jornais quando a filha concebida fora do casamento compareceu ao enterro do pai. A imprensa francesa tem um claro limite: a vida privada acaba na porta do quarto de uma pessoa pública ou ligada à política.
Naudascher contou um caso ocorrido há dois anos que exemplifica a relação da mídia com a vida íntima das autoridades. Um humorista francês que trabalhava em uma rádio pública fez uma crônica sobre a fama de Don Juan de Strauss-Kahn. Engraçada e muito exagerada, a peça advertia: “Cuidado que ele [DSK] está chegando por aqui! Mulheres, se escondam! Eu não quero ver nenhuma saia!”. Logo depois, a ousadia causou a demissão do humorista.
Tabu quebrado
Dines perguntou ao correspondente Mac Margolis se há um “aproveitamento político” do caso por parte da imprensa americana. Margolis explicou que há um “ranço” e uma raiva de longa data na postura dos americanos em relação aos franceses. “Esta é uma oportunidade para criticar os inimigos preferidos do cenário global. Depois do 11 de Setembro, os franceses disseram ‘não’ à invasão [do Iraque]. Os americanos derramaram vinho e rebatizaram a batata-frita, que nos Estados Unidos era ‘french fries’. Dali por diante, eram ‘as fritas da liberdade’. Chegou ao ridículo”, criticou Margolis.
O correspondente da Newsweek considera importante debater o direito à privacidade de figuras públicas que têm um cargo de confiança e chamou a atenção para o fato de que o tabu de ocultar as “indiscrições” de Strauss-Kahn foi quebrado em solo americano.
Margolis comentou que nos Estados Unidos há normas similares às da França, mas as regras são “testadas” diariamente pela imprensa. Um fator que contribui para que escândalos tenham destaque na imprensa norte-americana é a disputa entre os tabloides. Dines mostrou a fotografia do momento da prisão de DSK, onde o ex-diretor do FMI aparece algemado e perguntou se é possível, depois da publicação de imagens como essa em jornais de todo o mundo, que Strauss-Kahn retome a promissora vida pública.
Pavão e espanador
O jornalista Margolis relembrou uma divertida frase sobre a queda de personalidades: “Primeiro, pavão. Depois, espanador”. “A queda é muito brutal. Essa democratização radical da Justiça americana e da imprensa de mostrar todo mundo – seja o rei, seja o plebeu – em apuros tem um lado muito bom, mas tem um lado perigoso. Vai ser explorado em um tribunal por advogados milionários que vão dizer, com uma certa razão, que Strauss-Kahn foi pré-julgado na mídia”, advertiu Margolis.
Para Fábio Zanini, este é um momento definidor para a imprensa de vários países e, sobretudo, a francesa. Na avaliação do jornalista, houve dois choques na mídia da França neste episódio:
“O primeiro foi a imagem de Dominique Strauss-Kahn sendo transportado, escoltado e algemado por policiais americanos. Causou uma grande sensação no país. Mas eu acho que existe um segundo choque que está gerando uma autocrítica, um debate muito grande, da própria imprensa francesa, que é sobre se a imprensa não ‘cobriu de menos’ a vida pessoal de Strauss-Kahn e de outras autoridade políticas que, no passado, tiveram vidas pessoais atribuladas”.
Zanini acredita que o limite entre a vida pessoal e a pública de personalidades como presidentes e candidatos é cada vez mais tênue. “E a velha lei de que a vida privada dos políticos não interessa a ninguém está cada vez mais sendo flexibilizada”, sublinhou.
Novela real
Dines comentou que os desdobramentos do escândalo sexual estão desviando o foco das principais questões que deveriam ser discutidas após a renúncia de Strauss-Kahn: a sucessão no FMI e na presidência da França. O jornalista perguntou como Zanini administra esta peculiaridade no trabalho de edição do caderno Mundo.
O editor disse que o noticiário ligado ao FMI ou à política francesa é geralmente muito árido e específico. A partir do momento em que entra em cena um “escândalo policial e novelesco desta magnitude” é preciso ter cuidado para o aspecto de “folhetim” não “soterrar” o restante do noticiário internacional. A cobertura deve ser equilibrada, para que fatores essenciais não fiquem em segundo plano.
“São assuntos muito importantes, que ficam ofuscados neste momento por um caso que é de novela, de detetive, de seriado americano: é o ‘chefão’ que tenta assediar a camareira. Enredo de Hollywood, realmente”, exemplificou Zanini.