Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Sustentabilidade é a pauta da hora

Tem sido muito interessante observar as escolhas da imprensa a respeito das revelações feitas na sexta-feira (2/2), pelos 2.500 cientistas reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, a maioria das quais indica a necessidade urgente de transformações radicais em sistemas tão complexos como redes de transporte, matrizes energéticas, governança pública e privada e modelos educacionais.

Pela primeira vez, o ser humano é confrontado irremediavelmente com a possibilidade de ver desaparecer a sociedade como a conhecemos, o que representa um desafio muitas vezes maior do que a questão central que ocupou os corações e as mentes durante o século passado – a disputa pela hegemonia global entre o capitalismo e o socialismo de Estado.

Coincidentemente ou não, a revelação da tragédia planetária ocorre ao mesmo tempo em que as ciências oferecem a possibilidade de soluções ou paliativos para algumas das crises previstas, mas aparentemente não há magia que venha a funcionar sem a criação de novos paradigmas em modelos até agora tidos como irretocáveis pelo chamado establishment – os sistemas de poder nos quais se insere, como avalista, a imprensa tradicional.

Imediatamente após o anúncio do relatório, com a reprodução, em todo o mundo, de sua versão super-resumida, a internet ficou coalhada de mensagens e propostas de todos os tipos – desde convocações de manifestações e boicotes até as inevitáveis correntes de meditação. O inimigo, difusamente identificado ora como a indústria, ora como os desmatadores, se configura tão impessoal que se torna improvável uma reação organizada da sociedade.

Talvez a imprensa pudesse ajudar.

Exceção que confirma a regra

Este é um daqueles raros e fundamentais momentos da história em que não pode haver contemporização. Temos assistido a eventos episódicos, como as ações de ‘limpeza étnica’ nos Bálcãs, as guerras genocidas na África, a onda especulativa financeira de 1998 e as fraudes em grandes corporações, nos quais, por motivos humanitários, de autodefesa do sistema econômico ou pura sensatez, a opinião pública, as instituições multilaterais e o poder privado entraram em sintonia para estancar crises e retomar a ‘normalidade’.

Desta vez, porém, trata-se de uma crise do todo. Ironicamente, quando a humanidade percebe a hipótese de uma disciplina do todo, quando a filosofia, a ciência e a religião profunda convergem para a possibilidade do diálogo antes impossível, abre-se diante do homem o véu do apocalipse.

Qual será a posição da imprensa? Vinte e três anos atrás, quando o jornal ambientalista alternativo Estado de Alerta publicou uma reportagem de capa sobre ‘o inferno de Cubatão’, na Baixada Santista, a mídia ainda tratava o movimento em defesa do ambiente com indisfarçado preconceito.

Na ocasião, o Jornal da Tarde dedicava quase solitariamente espaço regular e nobre ao tema, por iniciativa pessoal do repórter Randau Marques. Em 1968, no mesmo ano em que se realizava na França a Conferência da Biosfera, um salto na história do movimento ecologista mundial, Randau havia se tornado o primeiro preso político brasileiro enjaulado pela Operação Bandeirantes por motivos ambientalistas – foi acusado de ‘subversão’ por denunciar a contaminação provocada pela indústria do couro na cidade paulista de Franca.

Uma ou outra ação individual de profissionais sensíveis ao problema da poluição urbana e devastação de florestas marcavam o jornalismo ‘verde’, como se dizia na ocasião. Os casos da Metalúrgica Aliberti, em São Paulo, coberto exaustivamente para a Agência Folha pela então repórter Dora Tavares de Lima, que hoje assina coluna de política no Estado de S.Paulo com o sobrenome Kramer, e do fechamento da indústria de celulose Borregard, em Porto Alegre, ainda nos anos 1970, são marcos dessa luta quase corpo-a-corpo de alguns jornalistas que davam voz ao incipiente movimento ‘ecológico’.

José Goldemberg, José Lutzemberger, Walter Lazzarini, Anna Primavesi, Cacilda Lanuza e mais tarde Fábio Feldmann, Edis Milaré, Roberto Klabin, João Paulo Capobianco, Mário Mantovani e outros líderes do movimento em defesa da qualidade de vida e do ambiente encontravam espaço na imprensa pelas mãos de uns e outros profissionais. É certo que Randau Marques influenciou positivamente o diretor da Agência Estado, Rodrigo Mesquita, que se tornou um abnegado batalhador pela causa a partir dos anos 1980, mas não era essa a regra na imprensa brasileira.

Noticiário fragmentado

Os casos ‘soprados’ por esses pesquisadores e militantes a alguns repórteres viravam notícia, mas isoladamente, sem uma conexão com o restante da edição. As editorias de Política e Economia, que deveriam abrigar naturalmente as discussões sobre o modelo econômico explorador de recursos naturais e sem cuidados com a preservação, passavam ao largo das denúncias. A imprensa, como instituição, costumava alinhar-se automaticamente aos defensores do ‘desenvolvimentismo’, para os quais qualquer restrição ao crescimento econômico a qualquer preço soava como crime lesa-pátria – e discriminava as pautas desses profissionais.

Em determinado momento desse processo, as teses da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) passaram a ser usadas por jornalistas para também vazar para a opinião pública idéias alternativas de desenvolvimento, agregando a defesa do meio ambiente ao debate econômico e às políticas públicas. Mas foi somente a partir da Conferência Rio-92, quando algumas grandes empresas começaram a se engajar no ideário preservacionista, que a mídia despertou para o problema.

De lá para cá, pontua eventualmente o tema da defesa ambiental, paralelamente à questão da responsabilidade social corporativa. Nesta década, surgiram os cadernos especiais e as seções semanais vagamente relacionados ao conjunto de subtemas que compõem o grande tema da sustentabilidade. Mas a questão do modelo de desenvolvimento não freqüenta essa pauta.

Do meio da semana passada para cá, a cobertura dos grandes jornais brasileiros não tem perdido em proporção e qualidade das informações para a imprensa mundial. No entanto, o noticiário segue fragmentado e o tema central das mudanças climáticas não é colocado no contexto das soluções amplas que vêm sendo sugeridas por organismos multilaterais, entre eles o insuspeito Banco Mundial. Da necessidade de melhor distribuição da riqueza à discussão sobre fontes alternativas de energia, passando por maior controle sobre o capital, viceja em torno da questão climática uma enorme variedade de temas que a imprensa ainda ignora, ou trata isoladamente.

Para fazer a diferença

A divulgação do relatório patrocinado pela ONU e pela Organização Meteorológica Mundial coloca toda a sociedade diante de escolhas cruciais. Sabe-se que o texto final foi conservador em relação aos danos potenciais que as mudanças climáticas irão provocar em todo o mundo. Junto com as dificuldades para o controle da qualidade ambiental, que irão desafiar as infra-estruturas das cidades, são previstas enormes perdas de produtividade no campo, que deverão se agravar potencialmente nas regiões mais pobres, onde faltam tecnologias, água, transporte e outros recursos.

São previsíveis as crises sociais e políticas em várias partes do globo, e nem mesmo as grandes potências estarão a salvo de conflitos de difícil contenção.

Entre o alarmismo, que pode conduzir a decisões irracionais, e a coragem para propor soluções inovadoras e transcendentais, a imprensa pode fazer uma grande diferença, se estender a pauta climática para o que realmente está em jogo: o sistema mundial de produção, a propriedade dos capitais e das tecnologias e o próprio conceito de desenvolvimento.

Essa é a grande pauta, que deveria estar cobrindo todas as páginas de jornais e revistas, todo o tempo do jornalismo eletrônico: sustentabilidade.

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Jornalista