Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tardias imagens do horror

Finalmente, a TV americana levantou uma ponta da cortina que esconde o que de mais infame os Estados Unidos andam fazendo no Iraque. Na noite de 28 de abril, o programa 60 Minutes II da CBS mostrou fotos de violências e humilhações de detentos no presídio de Abu Ghraib, em Bagdá.

Seguiram-se uma matéria no Washington Post do dia 30, com duas das mais chocantes fotos exibidas pela CBS, e duas reportagens (a segunda com fotos) em edições consecutivas do semanário New Yorker, de autoria do admirável repórter Seymour M. Hersh.

Na realidade, já em 16 de janeiro a mídia americana tinha sido alertada por um breve release do Comando Central dos Estados Unidos, no Golfo Pérsico, de que ‘começou uma investigação sobre relatados incidentes de abuso de detentos numa instalação das forças da coalizão’. Para justificar os seus termos vagos, a nota dizia que ‘a divulgação de informações específicas poderia prejudicar a investigação’.

A dica não fez soar alarme algum nas redações americanas.

No dia seguinte, lembra o ombudsman do Post, Michael Getler, vários órgãos de imprensa tocaram de leve no assunto. Passados outros quatro dias, a CNN informou que havia fotos dos abusos. Em 24 de fevereiro, o Post noticiou em três parágrafos que 17 soldados haviam sido suspensos.

A história continuou aparecendo a conta-gotas – e como que a contragosto. No dia 21 de março, enterrada na página 21, saiu no Post a notícia de que os militares anunciaram a abertura de processo criminal contra seis soldados. Mesmo a impactante matéria do Post de 30 de abril foi relegada à página 24.

Trabalho sujo

Não está claro quando a CBS conseguiu as fotos devastadoras. O que se soube é que a emissora podia tê-las colocado no ar antes do dia 28. Para sua desonra, a emissora tinha concordado em segurar o material por tempo indeterminado a pedido do chefe do Estado-Maior Conjunto, general Richard B. Myers. Ele alegou que a sua divulgação poderia pôr em risco vidas americanas. A CBS só mudou de idéia de medo que a concorrência lhe roubasse o furo.

Na semana passada, depondo no Senado, com a cabeça pedida pelo New York Times e a britânica Economist (com sua chamada ‘Renuncie, Rumsfeld’, numa capa de prêmio com uma das fotos das atrocidades), o chefe do Pentágono disparou: ‘Considerem-se avisados. Existem muito mais fotos e vídeos. Se forem liberados para o público, obviamente isso fará as coisas ficarem pior’.

É pouco provável que a mídia americana volte atrás agora: passou boi, deve passar boiada. Mas a TV americana precisaria virar-se pelo avesso para compensar os seus malfeitos desde que o governo Bush começou a planejar a aventura imperial que hoje faz água por todos os lados.

‘Desde o começo, o povo americano vem recebendo uma versão sanitizada da guerra no Iraque’, comentou Marvin Kalb, da Universidade Harvard, citado pelo repórter Tom Zeller, no New York Times de domingo. ‘E, portanto, uma visão algo distorcida para aqueles que dependem de imagens para a maioria de suas impressões da guerra.’

Ponha-se distorcida nisso. Pesquisadores da Universidade de Maryland perguntaram a uma amostra da população americana quantos civis iraquianos teriam morrido nos meses de março e abril do ano passado, durante a invasão. Três em cada quatro entrevistados responderam ‘menos de 2 mil’. As estimativas confiáveis variam de 3.240 (Associated Press) a mais de 7 mil (Iraq Body Count).

Faz sentido. Diferentemente das emissoras européias, para não falar das árabes, as TVs americanas raramente ousaram mostrar cenas de civis iraquianos feridos, mortos ou agonizantes. (Tampouco de soldados americanos, aliás.)

‘Os crimes em Abu Ghraib e outros lugares não são comparáveis a My Lai, no Vietnã, ou a outras atrocidades cometidas no calor da batalha por aterrorizados recrutas e oficiais inadequados’, argumenta o professor Tony Judt, da Universidade de Nova York. ‘Eles nasceram da notória indiferença a leis, regulamentos, direitos e regras que caracteriza este governo desde o início e que, cedo ou tarde, chegaria, por filtração, aos sargentos e mercenários que fazem o trabalho sujo.’

Alguém acha que a TV americana algum dia levará essa interpretação ao público, junto com as imagens do horror? [Texto fechado às 23h13 de 10/5]