O último dia 8 de junho marcou os 200 anos da morte de Thomas Paine (1737-1809), cidadão inglês julgado e condenado por traição em seu país, cidadão honorário da França, pioneiro defensor dos direitos do homem e ativo participante das duas principais revoluções democráticas modernas – a francesa e a americana.
Imerecidamente esquecidas durante décadas, as idéias de Paine têm sido revisitadas a partir das comemorações do bicentenário da Independência dos EUA (1976) e ganharam visibilidade pública recentemente quando uma frase sua foi citada pelo presidente Barack Obama no discurso de posse. Mesmo assim, o bicentenário de sua morte passou despercebido.
No campo das comunicações, Paine tem sido referência, direta ou indiretamente, em relação a uma questão fundamental: a liberdade de imprensa. Dois exemplos:
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J. H. Altschull (The Ideas Behind American Journalism, J. Hopkins, 1990) afirma que ele deveria ser lembrado como ‘o santo padroeiro do jornalista ativista, do destemido caçador da verdade (…), do defensor do direito do público à informação’.**
John Keane (The Media and Democracy, Polity Press, 1991), por outro lado, argumenta que a defesa in absentia de Paine da acusação de propagar seditious libel pela publicação de Direitos do Homem, feita por Thomas Erskine (1750-1823), perante um júri especial em Londres, é um dos documentos pioneiros contra a censura da imprensa (texto na íntegra disponível aqui).Erskine em 1792, como John Milton (1608-1674) antes dele, considerava o direito de imprimir um direito individual natural. Desnecessário lembrar que, na Inglaterra do final do século 18, ‘the press’ significava apenas as tipografias que imprimiam textos individuais de autores, vale dizer, a imprensa não havia ainda se transformado em uma instituição controlada por poderosos grupos empresariais.
Artigo desconhecido
Curiosamente, não se tem notícia da tradução, no Brasil, do único artigo no qual Paine discute especificamente a liberdade de imprensa. Ele continua, praticamente, desconhecido entre nós.
Trata-se de um pequeno texto, escrito por Paine quando voltava aos EUA em sua maturidade, e publicado no American Citizen, jornal que circulou em Nova York, entre 1802 e 1810.
Paine, objeto de ataques pessoais contínuos da imprensa federalista por sua intransigente defesa da participação popular nas responsabilidades de governo e por seu deísmo anti-igrejas (foi chamado de ‘réptil asqueroso’ e ‘besta semi-humana’), além de revelar amizade muito próxima do então presidente dos EUA, Thomas Jefferson (1743-1826), desenvolve seu argumento em torno de três pontos fundamentais que ainda permanecem atuais e válidos.
Primeiro, ele afirma, apoiado em Jefferson, que o patrimônio mais importante dos jornais é a sua credibilidade. Sem ela, as causas defendidas por eles serão sempre derrotadas porque ‘ninguém acredita em um mentiroso vulgar ou em um difamador comum’.
Segundo, Paine lembra que o termo ‘liberdade de imprensa’, embora permanentemente evocado pelos ‘impressores’ (printers), não é corretamente compreendido e nem se conhece sua origem histórica.
E, finalmente, Paine descreve as circunstâncias em que a expressão ‘liberdade de imprensa’ passou a ser usada quando a Revolução Inglesa de 1688 aboliu a exigência de autorização prévia do Imprimateur do governo para a impressão de textos. Ele chama a atenção para o fato de que a liberdade de imprimir nada tem a ver com o conteúdo impresso. A responsabilidade sobre o conteúdo é daquele que escreve (fala).
O terceiro ponto levantado por Paine, curiosamente, contraria o principal argumento utilizado por Thomas Erskine em sua defesa, 14 anos antes. Para ele, a liberdade de imprimir não exime o autor de ser julgado pelo público e/ou de responder, perante os poderes constituídos, pelo conteúdo impresso.
Vale a pena ler e refletir sobre o precioso pequeno artigo de Thomas Paine, transcrito abaixo em tradução livre deste autor. O texto original está disponível aqui.
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Liberdade de imprensa
Thomas Paine # reproduzido de American Citizen, 19 de outubro de 1806
O escritor [deste artigo] lembra de uma afirmação feita a ele pelo Sr. [Thomas] Jefferson em relação aos jornais ingleses que, àquela época, 1787, enquanto o Sr. Jefferson era ministro em Paris, eram, quase todos, vulgarmente abusivos. A afirmação aplica-se com força igual aos jornais federalistas da América. A afirmação era de que ‘a permissividade (licentiousness) da imprensa produz o mesmo efeito que o controle (restraint) da imprensa pretendia, se o controle era para evitar que coisas fossem ditas e a permissividade da imprensa evita que se acredite nas coisas quando elas são ditas’. Nós temos neste estado uma evidencia da verdade desta afirmação. O número de jornais federalistas na cidade e no estado de Nova York são mais do que cinco para um o dos jornais republicanos, mesmo assim, a maioria dos (resultados) das eleições vai sempre contra os jornais federalistas, o que é evidência demonstrativa de que a licenciosidade destes jornais é destituída de crédito.
Qualquer um que tenha feito observações sobre o caráter das nações verificará que geralmente é verdade que os hábitos (manners) de uma nação ou de um partido podem ser mais bem descobertos do caráter de sua imprensa mais do que de qualquer outra circunstância pública. Se sua imprensa é permissiva, seus hábitos não são bons. Ninguém acredita em um mentiroso vulgar ou em um difamador comum.
Nada é mais comum com impressores, especialmente de jornais, do que a permanente cobrança (continual cry) da liberdade de imprensa, como se pelo fato de serem impressores eles devessem ter mais privilégios do que outras pessoas. Como o termo liberdade de imprensa é usado neste país sem ser compreendido, irei descrever sua origem e mostrar o que ele significa. O termo vem da Inglaterra e o caso foi como se segue:
Antes do que na Inglaterra é chamada A Revolução, que foi em 1688, nenhum texto (work) podia ser publicado naquele país sem obter primeiro a permissão de um oficial designado pelo governo para inspecionar os textos que pretendiam ser publicados. O mesmo acontecia na França, exceto que na França existiam quarenta que eram chamados censores e na Inglaterra existia apenas um chamado Imprimateur.
Na Revolução, o cargo de Imprimateur foi abolido e os textos podiam, então, ser publicados sem primeiro obter permissão do oficial do governo. A imprensa era, em consequência desta abolição, dita ser livre e foi dessa circunstancia que o termo liberdade de imprensa surgiu.
A imprensa, que é uma língua para os olhos, foi, então, colocada exatamente na situação da língua humana. Um homem não demanda liberdade antecipadamente para falar algo que ele tem a dizer, mas ele se torna responsável depois pelas atrocidades que ele pode ter dito. Da mesma forma, se um homem faz a imprensa dizer coisas atrozes, ele se torna tão responsável por elas como se ele as tivesse dito pela boca. O Sr. Jefferson disse em seu discurso de posse que ‘o erro de opinião pode ser tolerado quando a razão foi deixada livre para combatê-lo’. Essa é filosofia sólida em casos de erro. Mas há uma diferença entre erro e permissividade.
Alguns advogados na defesa de seus clientes (os advogados, em geral, como soldados suíços, lutarão em qualquer dos lados) têm frequentemente dado sua opinião do que eles definiram como sendo a liberdade de imprensa. Um disse que era isso, outro disse que era aquilo, e assim por diante, de acordo com o caso que eles estavam representando. Agora esses homens devem ter sabido que o termo liberdade de imprensa surgiu de um FATO [maiúsculas no original], a abolição do cargo de Imprimateur e que opinião não tem nada a ver no caso. O termo se refere ao fato de imprimir livre de controle prévio e não tem absolutamente nada com o assunto impresso, se bom ou ruim. O público em geral ou, no caso de um julgamento, o júri do condado, serão os juízes do assunto.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)